SÃO PAULO
PRECISA PARAR
Texto de Denis Joelsons
Delírio, stills do vídeo de Laís Myhrra
As decisões e os embates que conduziram as cidades brasileiras à adoção da matriz rodoviária em detrimento de outros modais remetem às primeiras décadas do século XX: Washington Luís, que foi prefeito de São Paulo de 1914 a 1917, ficou conhecido pela política de priorizar rodovias sintetizadaem sua conhecida frase: “Governar é abrir estradas”. A companhia canadense São Paulo Tramway, Light and Power Company propôs, em 1927, um abrangente plano metroviário para a cidade. Prestes Maia, que se tornaria prefeito, combateu o projeto metroviário da Light articulando interesses políticos como o fim do monopólio estrangeiro e a exploração fundiária de terrenos periféricos da cidade, permitida apenas com a flexibilidade do transporte rodoviário.
O início do processo de sucateamento da malha ferroviária do país é concomitante ao surgimento das primeiras montadoras. Em 1953, em seu segundo governo, Getúlio funda a Petrobras no mesmo ano em que assina o acordo para a construção da fábrica da Volkswagen no Brasil. A fábrica foi inaugurada em São Bernardo do Campo, apêndice industrial de São Paulo, com a presença do presidente Juscelino Kubitschek na fundição de seu primeiro motor, em 1959. O desenvolvimentismo de JK era ainda mais orientado ao rodoviarismo do que o de Getúlio, e culminou na mudança da capital federal do Rio para Brasília, ponto fulcral de seu Plano de Metas.
De Washington Luís à segunda gestão de Prestes Maia, a presença dos carros em São Paulo se intensificou brutalmente, mas a estrutura da cidade e o tipo diverso de vida social que os bairros e o centro abrigavam perdurarama despeito da expansão da frota e do espraiamento de sua mancha urbana. A cidade manteve sua forma apesar da fricção crescente com o mundo do automóvel. A falta de vagas e os congestionamentos, cada vez maiores, começaram a prejudicar o comércio no centro da cidade. Motoristas estacionavam impunemente sobre as praças e, por vezes, nopasseio público. Os shopping centers e supermercados, formas originalmente suburbanas de comércio, conquistavam espaço na cidade. A queda do movimento de compradores no centro fez com que a prefeitura criasse uma lei de incentivo à construção de edifícios-garagem, isentando de impostos por dez anos os investidores. Nas décadas de 1960 e 1970 o centro densamente construído de São Paulo recebe 35 edifícios verticais de garagens com elevadores de carros.
Em abril de 1968 a última viagem de bonde pela cidade foi celebrada pelo prefeito Faria Lima, o primeiro a administrá-la após o golpe de 1964. Os veículos foram embandeirados e decorados com faixas com os dizeres: “A viagem do Adeus” e “Rendo-me ao progresso, Viva São Paulo”. O percurso foi simbolicamente embalado por uma valsa. A dança dos veículos abriu os anos do “milagre econômico”, momento também conhecido como “os anos de chumbo” da ditadura militar. Ainda que a ênfase no transporte rodoviário viesse de longa data, a cidade que conhecemos hoje herdou suas feições desseperíodo surpreendentemente curto de tempo, tendo em vista as mudanças estruturais que ele acarretou.
Quase toda a infraestrutura de vias expressas da cidade foi inaugurada nesseínterim: as marginais dos rios Tietê e Pinheiros, o eixo de Ligação Leste-Oeste, que inclui o Minhocão, o eixo de Ligação Norte-Sul, as inúmeras alças e os viadutos sobre o Parque D. Pedro II, os alargamentos das avenidas Sumaré, Rebouças, Pacaembu, Cruzeiro do Sul e Rio Branco, a duplicação da rua da Consolação e o Projeto Nova Paulista, parcialmente construído e então abandonado. No mesmo período, também é promulgada a primeira Lei de Zoneamento e é construída a primeira linha de metrô da cidade, obra fundamental para o transporte de massas, ainda que de escala muito tímida se considerarmos o panorama geral de obras contemporâneas a ela.
O Minhocão passou por cima da Avenida São João, consolidada historicamente como a mais importante esplanada na vida cultural da cidade. Os acessos do elevado implicaram ademolição de diversos edifícios históricos. A implantação de vias expressas, como as marginais do Pinheiros e do Tiête, e as avenidas de fundo de vale, como a Pacaembu ou a Sumaré, impermeabilizaram irremediavelmente o leito dos mais importantes rios da cidade. Bairros centrais, históricos e populares, como o tradicional Bexiga, foram dilacerados por viadutos, rampas e túneis. São Paulo virou um amontoado de escombros, trincheiras enlameadas e um grande canteiro de obras. Para o desenvolvimentismo militar não haviaobstáculos. Depois da criação do Ato Institucional n°5, em dezembro de 1968, enfrentar as retroescavadeiras por meio de manifestações populares estava fora de cogitação. Qualquer noção de patrimônio histórico, cultural ou ambiental foi submetida à tecnocracia rodoviarista que se empolava em velhos lemas ufanistas como “São Paulo não pode parar”, “A cidade que mais cresce no mundo” ou, ainda, “São Paulo é a locomotiva do país”.
O regime militar deu uma coloração mais sombria a um movimento de transformação enfrentado por diferentes metrópoles estrangeiras, sobretudo porque na devastação causada pela implantação de vias expressas em regimes democráticos houve alguma possibilidade de oposição e resistência. Em bairros nova-iorquinos, como o Bronx, as obras capitaneadas por Robert Moses encontraram um entrave nas associações de moradores que começavam a se articular em torno de ativistas como Jane Jacobs.
O sentimento ambíguo de progresso marcou grande parte da cultura popular do período. Pelo menos desde os anos 1950, com a grande difusão da cultura americana que fermentou no segundo pós-guerra. A estrada se firmou como metáfora da vida no imaginário popular, deixando os trilhos para trás. O carro virou uma espécie de metonímia do indivíduo. No avesso do entusiasmo nacional com os “calhambeques”, a obra de Adoniran Barbosa relata liricamente a tragédia daqueles que ficaram à margem da autopista do “progréssio”. Em canções como Saudosa Maloca, Iracema, Triste Margarida, Praça da Sé e Pincharam a estação no chão, ele narra temas como o atropelamento, os despejos e a destruição da cidade afetiva.
Como a topografia de São Paulo é muito acidentada, a cidade desenvolveu uma tradição de construir suas grandes avenidas e linhas de trem nos fundos de vale, regiões mais planas, formadas pelos caminhos da água. O topo do “espigão central” ofereceu ao engenheiro uruguaio Joaquim Eugênio de Lima a oportunidade rara de construir uma avenida plana no alto. Um belvedere com amplas vistas para os vales dos rios Pinheiros e Tietê. A avenida Paulista manteve-se ocupada quase integralmente por seus palacetes residenciais até a década de 1950, quando a construção de grandes edifícios anunciou a transformação da paisagem e dos usos que consolidaria a avenida como um novo centro para a cidade.
A interligação de diferentes vales e colinas pelo eixo da Paulista estava enunciada desde a abertura da avenida por sua condição geográfica privilegiada. Esse eixo fundamental já figurava no Plano de Avenidas de Prestes Maia e evidentemente integrou o Plano de Vias Expressas, proposto pelo engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz em 1970. À medida que a Paulista se consolidava como centro de negócios na década de 1960, o conflito entre o trânsito local e o trânsito de passagem da avenida se agravava. A retomada dos planos urbanísticos para a Paulista se impunha por necessidade.
Em 1965, o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim sugere o alargamento e a expansão do conjunto de avenidas sobre o espigão central da cidade que compõe o eixo de conexão Jabaquara — Cerro Corá. Em seus estudos, a avenida Paulista deveria ter sua calha ampliada de 28 para 48 metros. O alargamento seria feito por meioda ocupação de recuos obrigatórios de 10 metros, uma exigência legal do antigo loteamento da avenida, que separava as edificações das calçadas. Na gestão de José Vicente de Faria Lima, o Departamento de Urbanismo e Vias Públicas acolhe a sugestão de alargamento da avenida, propondo um estudo para o rebaixamento da avenida em vala aberta, com pistas expressas na parte inferior e pistas locais na parte superior, evitando cruzamentos em nível. Se a proposta fosse implementada, quase não sobrariam calçadas.
Figueiredo Ferraz, que havia feito o projeto estrutural do MASP e tinha um dos mais respeitados escritórios de engenharia do país, é contratado em 1967 pela prefeitura para desenvolver e adequar esseestudo. No mesmo ano, sua equipe já havia apresentado uma proposta para o cruzamento da avenida Prestes Maia com a avenida Senador Queiroz, no vale do Anhangabaú. O arquiteto Nadir Mezerani, responsável pela concepção urbanística e arquitetônica na equipe de Ferraz, propôs a criação de um “túnel semiaberto” com a passagem de pedestres feita em nível, por cima da via expressa. Para a “Nova Paulista” a equipe propõe uma solução análoga. O “túnel semiaberto” estaria a meio caminho entre a vala aberta, proposta anteriormente, e o túnel fechado. A proposta de rebaixamento em vala segregaria gravemente o tecido urbano da região.
A nova proposta aumentaria a largura total do leito carroçável, com as pistas superiores se ‘debruçando’ em balanços de 6,5 metros sobre as vias expressas rebaixadas. Os vãos foram trabalhados como uma sucessão de aberturas oblongas. O projeto apresentou soluções técnicas arrojadas. Os grandes balanços foram viabilizados por pares de tubulões cavados transversalmente à avenida. A concretagem das pistas superiores em balanço seria feita sobre a terra, dispensando cimbramentos. O espaço rebaixado para a via expressa seria escavado já com uma previsão para os túneis do futuro metrô e com galerias laterais de infraestrutura urbana.
Para impedir novas interferências no ProjetoNova Paulista, Faria Lima promulga, em 1968, a Lei nº7.166 que proíbe que as construções avancem sobre ou sob os alinhamentos já estabelecidos pelos recuos obrigatórios. Nos últimos meses como prefeito, inicia as obras pelo “Complexo Paulista-Consolação”. A ruada Consolação acabara de ser duplicada e o projeto para a ligação com as avenidas Paulista e Doutor Arnaldo já havia sido desenvolvido. O entroncamento foi adequado pela equipe de Ferraz para se conectar ao novo perfil previsto para a Paulista. O cuidado do ProjetoNova Paulista em promover a continuidade do chão da cidade, expresso no corte transversal, não se verifica nas alças de acesso às pistas expressas — resolvidas de maneira muito similar à apresentada no anteprojeto do Departamento de Urbanismo.
As obras e desapropriações seguem em ritmo acelerado na gestão de Paulo Maluf, conhecida, entre outras coisas, pela ênfase nas obras viárias em detrimento até do metrô. Maluf apressa as obras para inaugurar ainda em sua gestão o conjunto do Elevado Costa e Silva, conhecido como Minhocão, a Praça Roosevelt e o primeiro trecho da Nova Paulista, compreendido entre a ligação com a Consolação — Rebouças e o cruzamento com a rua Haddock Lobo. Nadir Mezerani relata que a equipe responsável pelo projeto lutou para que o primeiro trecho se estendesse pelo menos até cruzar a ruaAugusta, uma das transversais mais importantes da avenida.
Em meados de 1971, o próprio Figueiredo Ferraz é nomeado prefeito pelo governador Laudo Natel e, com o todo o projeto executivo em mãos, dá seguimento àsobras de maneira mais estruturada. A proposta de contemplar os túneis do futuro metrô é deixada de lado e a contratação para a execução é feita pela EMURB. O consórcio formado decide pela divisão estratégica da obra em três trechos partilhados por diferentes construtoras e executados concomitantemente. As obras aconteciam à medida que as desapropriações dos recuos se efetivavam, seguindo a ordem ditada pelos processos legais.
Os recuos que estavam sendo desapropriados para viabilizar o alargamento da Paulista eram obrigatórios para os edifícios, desde o loteamento inicial, mas não para os subsolos até a Lei nº7.166 de 1968. Para permitir a execução das fundações necessárias aos balanços estruturais, as garagens teriam de ser parcialmente desapropriadas no alinhamento dos 10metros de recuo. As indenizações por desapropriação compreendiam tanto os terrenos como as ‘benfeitorias’, ou seja, as obras já edificadas. A remuneração que compensaria a perda parcial dos estacionamentos não bastou. Proprietários e empresas residentes da avenida articularam um movimento de oposição ao projeto. Além das garagens, os subsolos que seriam desapropriados abrigavam instalações como o caixa-forte do banco Banespa, na área do atual Shopping Center 3, e uma quadra de vôlei do ClubeHoms — existente até hoje.
Concessionárias que fornecem serviços públicos como gás, energia e linhas telefônicas ocupam o espaço aéreo ou subterrâneo da cidade sem que seja cobrada nenhuma contrapartida pelo espaço ocupado. Como a infraestrutura é competência pública há um acordo que permite a ocupação de tais espaços. É o caso do metrô de São Paulo que, com a tecnologia construtiva do shield, popularmente conhecido como tatuzão, pôde passar nos subsolos da cidade sem escavar a superfície diretamente correspondente. Os túneis do metrô passam sob lotes privados, dispensando desapropriações.
A posse e o uso dos subsolos ainda são temas de debate constantes, sobretudo na exploração de recursos naturais. Sob a terra é possível intuir o fio condutor que liga a questão da posse, na exploração do petróleo, aos problemas causados pelos estacionamentos urbanos. O espaço ocupado pelos automóveis é a outra ponta da mesma cadeia produtiva. Se os beneficiários são empresasprivadas, os prejuízos são sempre enfrentados em âmbito público. É o caso dos danos ambientais de efeito global, mas também dos transtornos provocados pela impermeabilização excessiva do solo urbano, cravado de garagens e recoberto de asfalto. Em 2011 uma pesquisa estimou que pelo menos 1/4da área construída de São Paulo é dedicada aos estacionamentos.
No Projeto Nova Paulista o obstáculo das garagens foi subestimado. O protesto dos comerciantes da avenida se uniu em coro aos dos proprietários insatisfeitos com a perda de vagas. Os comerciantes exigiam alguma contrapartida pela queda de movimento provocada com as escavações. As obras haviam transformado o novo centro comercial da cidade em uma grande trincheira enlameada. As árvores desapareciam da avenida com o alargamento e os velhos casarões as seguiam, levados pela especulação imobiliária.
As objeções ao projeto e sua reverberação na imprensa surpreendem. Nenhuma das quimeras edificadas no período ganhou tanto espaço nos jornais. Obras como o Minhocão e a Praça Roosevelt transcorreram com o abafamento de qualquer entrave levantado pela sociedade civil, como era de praxe na ditadura. O coro contra o projeto foi engrossado por um grupo de deputados liderado por Wadih Helou, que apresentou uma moção contrária à sua execução na Assembleia Legislativa, alegando irregularidades na concorrência da contratação das obras. Defendendo-se das queixas impulsionadas pelos transtornos e paralisações causados com as obras da Nova Paulista, o prefeito Figueiredo Ferraz proferiu uma frase que ganharia a própria fama: “São Paulo precisa parar”. A inversão do lema ufanista “São Paulo não pode parar” foi extensivamente utilizada na campanha contra Ferraz e contra aNova Paulista.
Em 1973, com as obras em andamento por toda a extensão da avenida, Figueiredo Ferraz é destituído e os trabalhos são interrompidos. Nadir Mezerani estima que cerca de mil tubulões de 80 centímetrosde diâmetro e 12 metros de profundidade tenham sido concretados na avenida. Miguel Colassuono, o novo prefeito, contrata um novo projeto de Rosa Kliass para o paisagismo e outro, de Cauduro Martino, para a sinalização da avenida Paulista alargada. Os trechos do projeto interrompido que já haviam sido realizados são aterrados para reestabelecer a superfície da avenida. Em 1974, meses após a primeira crise do petróleo, a Paulista é reaberta ao tráfego.
A corrida do desenvolvimentismo paulistano não conhecia obstáculos. Edifícios históricos, bairros vibrantes, parques, praças e rios da cidade foram destruídos sem muita cerimônia para dar passagem às vias expressas. No subterrâneo da Paulista, quando o túnel ameaçou as garagens, algo estava errado. A cobra faminta havia chegado ao próprio rabo. O principal projeto encabeçado por Figueiredo Ferraz não se efetivou porque vagas de estacionamento estavam em jogo. A frase se impôs contra seu autor: “São Paulo precisa parar”.
Denis Joelsons
Arquiteto e urbanista, mestre em arquitetura pela FAU-USP.
Laís Myrrha
Artista visual belorizontina, vive e trabalha em São Paulo.
Como citar
JOELSONS, Denis. São Paulo precisa parar. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 08 out. 2018.