TEMPOS VIRAIS
Texto de Peter Szendy
O futuro avança para trás, escultura de João Castilho
Apesar dos sinais de alerta, apesar das notícias vindas da China, era como se tivéssemos acordado da noite para o dia em um mundo completamente diferente. Totalmente diferente, mas exatamente o mesmo.
A emergência de estar parado
Para alguns, inclusive eu, tudo parou. A imobilização tem efeitos visíveis, pelo menos através dos olhos das máquinas que continuam a voar enquanto os humanos estão fincados no chão: satélites mostram o céu limpo de emissões poluentes na China, Milão ou Paris.
Para outros, tem sido uma aceleração sem medida. Diante da crescente rapidez dos contágios e da multiplicação de casos graves ou fatais, as equipes de saúde estão sobrecarregadas e exaustas. A Amazon está contratando pesado para tentar atender a um volume explosivo de pedidos, enquanto os trabalhadores dos armazéns da empresa nos EUA começam uma greve para protestar contra a falta de proteção no local de trabalho. E é necessária uma intensa atividade de humanos e máquinas para o monitoramento em massa dos dados de geolocalização de telefones celulares, a fim de controlar a conformidade com o confinamento: nossa imobilidade promove uma grande mobilização.
Hipervelocidade e paralisação são dois extremos que pertencem um ao outro. Em seu ensaio sobre o “homem-jato”, contido no livro Mitologias, Roland Barthes escreveu que a “vocação” desse piloto de aviões de propulsão a jato consiste em “ultrapassar o movimento, indo mais rápido que a velocidade”1. O mundo-a-jato hoje parou à beira de uma precipitação que continua nos bastidores, em uma economia informal e paralela.
Tal paralisia na aceleração veio como resultado de outro paradoxo temporal: nada mudou, nada aconteceu, mas tudo o que parecia impensável, inacreditável ou impossível agora se tornou óbvio, loucamente óbvio e, no entanto, tão banal.
Anos, décadas de desmantelamento neoliberal de infraestruturas de saúde e pesquisa, como sabíamos, só poderiam levar a uma catástrofe previsível. E a destruição inexorável de habitats de animais há muito tempo aumenta o risco de zoonoses, isto é, passagens de um vírus de uma espécie para outra. Nada de novo, portanto, nos aconteceu. Em vez disso, um processo que conhecíamos bem, sem querer reconhecê-lo, de repente cristaliza diante de nossos olhos.
O acontecimento tem precisamente a forma de uma polifonia interna feita de temporalidades e camadas de velocidades sobrepostas. Ele apareceu como a improvável e surpreendente novidade de algo que, afinal, já havia acontecido há muito tempo. De repente, acordei em outro mundo, o mesmo mundo. Um mundo paralisado por girar mais rápido que si mesmo.
Epidemias ou endemias
Esses tempos simultâneos, embora assíncronos, constituem a medialidade do acontecimento hoje, seu modo de ocorrer através dos meios e mídias que o carregam. O que a pandemia atual revela são os diferenciais de velocidade que moldam a chegada do acontecimento, que a esculpem e a distendem por dentro.
Em um nível microscópico, de acordo com os estudos realizados até agora, a média de vida do vírus varia consideravelmente dependendo do elemento no qual ele evolui: de algumas horas no ar (na forma de aerossol) a vários dias sobre aço ou plástico. Em escala planetária, não se pode deixar de se surpreender também com a complexa propagação do contágio: longe do imediatismo que um certo imaginário de interconexão globalizada nos levaria a esperar, o que vemos é uma virulência que explode nos Estados Unidos dois meses depois que ter explodido na China; enquanto a China, onde os restaurantes estão se enchendo de novo, se prepara para uma segunda onda viral. Aqui, o vírus está chegando com força; lá ele retorna em um loop. E a temporalidade da indefinição por vir promete ser ainda mais emaranhada, com prováveis recaídas e recomeços.
Como devemos entender a contemporaneidade desse acontecimento que se desenrola como uma onda ao mesmo tempo em que gira em torno de si? Quero dizer: como devemos entender não apenas seus regimes temporais – suas evoluções, seus picos e seu curso, seu refluxo –, mas também sua maneira de ser concorrente (ou não) com grandes mudanças em nossas sociedades?
Na última de suas palestras proferidas no Collège de France em 1976, Michel Foucault introduziu uma distinção entre epidemias e “aquilo que podemos, de modo geral, chamar de endemia”2. Foucault fez esta distinção ao identificar e relacionar uma à outra, “duas tecnologias de poder que foram estabelecidas em tempos diferentes, as quais foram sobrepostas”: de um lado, “uma tecnologia disciplinar” para a qual “o corpo é individualizado”; e de outro, uma tecnologia securitária [assuranciel] ou regulatória relativa aos “processos biológicos ou biossociológicos característicos das massas humanas”. Isto é, o que ele propõe chamar “uma ‘biopolítica’ da raça humana”3.
Agora, a esta complexa mudança de paradigma corresponde, para Foucault, uma mutação nosológica que parece mais claramente marcada ou pontuada. Nesta mesma conferência, Foucault afirma que
“No final do século XVIII, não eram as epidemias que eram o problema, mas outra coisa — o que em geral poderia ser chamado de endemia. (…) A morte não era mais algo que subitamente mergulhou na vida — como em uma epidemia. A morte era agora algo permanente, algo que entra na vida, algo que perpetuamente a atormenta, que a diminui e a enfraquece.”4
Tipos de doenças e tecnologias de poder estão inter-relacionadas, mutuamente implicadas, diz Foucault. E a pergunta que parece estar na boca de todo mundo hoje, mesmo de maneiras silenciosas ou inéditas, é esta: com o quê o coronavírus é contemporâneo? Ou melhor, do quê ele é a metonímia ou a sinédoque? Em outras palavras, a qual regime ou tecnologia de poder ele conecta as pontas de sua coroa? Qual é o organismo ou organização do poder — soberano, disciplinar ou biopolítico — que o hospeda e está sistematicamente relacionado a ele?
Para dar a esta questão todo o seu alcance, também devemos considerar, por um lado, que entre os “domínios” ou “campos de intervenção” que “surgiram no final do século XVIII” com o nascimento da biopolítica, há o que Foucault chama o “controle sobre as relações entre (…) seres humanos na medida em que esses formam uma espécie, na medida em que são seres vivos em seu meio-ambiente”5. A Ecologia, em suma, também é contemporânea do biopoder.
Precisamos considerar, por outro lado, a extensão das análises Foucaultianas que Gilles Deleuze propôs em 1990 em seu Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle, onde sugere estabelecer “uma correspondência entre qualquer sociedade e algum tipo de máquina”6. O que ele chama de “sociedades de controle” — uma generalização de disciplinas e biopoder fora de seus muros institucionais e até nos micro-poros do tecido social — é para ele a era da “contaminação viral” por excelência.
E o coronavírus, então? Que tipo de sociedade o hospeda? E a qual paradigma nosológico-político ele pertenceria?
Enquanto os epidemiologistas esperam que a Covid-19 se torne uma nova doença sazonal, podemos nos perguntar, de acordo com a distinção Foucaultiana, se estamos lidando com epidemias ou endemias. A menos que estejamos enfrentando o ressurgimento de uma temporalidade epidêmica desde dentro do próprio coração da “homeostase” endêmica regulada pela biopolítica. O que devemos, portanto, refletir é sobre uma contaminação que não pode mais ser contida dentro da distinção entre epidemias e endemias – uma contaminação que contamina essas categorias elas mesmas, uma pela outra. O que poderíamos testemunhar, então, é uma pandemia que não seria contemporânea nem às sociedades passadas de soberania, naturalmente, nem às sociedades disciplinares e seus desenvolvimentos biopolíticos, e tampouco às Deleuzianas “formas de controle” [contrôlats] que as prolongam.
Depois de se tornar pandemia, a epidemia pode acabar endêmica, embora ainda pontuada por picos epidêmicos; mas o inverso também é verdadeiro: a praga endêmica dos sistemas de saúde sob o capitalismo explodiu em uma crise de pandemia. Esta última é objeto de monitoramento estatístico permanente, é claro, mas parece impedir a preparação securitária e os controles regulatórios. Em suma, o que surge com essa formação nosológica que é ao mesmo tempo nova e familiar talvez seja o próprio diferencial temporal entre esses paradigmas aos quais ela pertence, enquanto as excede em todos os aspectos.
Uma crise da crise?
Eu estaria inclinado a dizer que esses paradigmas são postos em crise, isto se o acontecimento chamado coronavírus não transbordar até a categoria de crise ela mesma. Em seu Manifesto Comunista, falando do “retorno periódico” das “crises comerciais” que abalam a sociedade capitalista, Karl Marx e Friedrich Engels as descreveram como uma “epidemia social” [gesellschaftliche Epidemie]. Mas a regularidade dessas crises acabou consagrando a frase “crise endêmica”.7
A própria noção de crise ainda faz parte do que ela coloca em crise: ao determinar a ameaça como uma crise, “alguém a domina, domestica, neutraliza”, escreveu Jacques Derrida em Economias da Crise, de 1983, quando questionado sobre “a ideia de que o mundo atual está em crise”8. A crise, especialmente quando é endêmica, já é o horizonte para uma saída da crise. É por isso que Derrida poderia acrescentar: “por sua vez, em crise, o conceito de crise seria a assinatura de um último sintoma, o esforço convulsivo para salvar um ‘mundo’ que não habitamos mais”9.
Nas últimas semanas, foram feitas promessas que seriam impensáveis há alguns meses, por exemplo, a de ressuscitar um sistema de saúde pública agonizante. O atual governo francês, que vinha defendendo posições neoliberais no campo da saúde, agora fala em favor de um Estado provedor. Resta ver se essas promessas serão mantidas (os sinais não são encorajadores). Compromissos mais ou menos tácitos também são feitos regularmente, por exemplo, sobre a natureza temporária e excepcional das medidas de vigilância em massa implantadas ou atualmente experimentadas. Aqui também, tudo está de prontidão, e tudo ainda está por vir.
Ainda veremos se o coronavírus vai acabar sendo apenas mais uma crise, talvez uma mais memorável que outras. E acima de tudo a ser decidida. Uma decisão que deve ser tomada agora, mas que terá que ser tomada novamente, novamente e novamente, mais tarde.
O que coronavírus terá sido, nós teremos que lembrar sem apagar seus diferenciais de tempo. Teremos que manter viva a experiência das heterocronias que teceram a textura medial do acontecimento.
Ele vai decididamente levar diversos tempos para acontecer conosco.
NOTAS
- BARTHES, Roland. The Jet-Man. Nova York, 1972, p. 71.
- FOUCALT, Michel. Society Must Be Defended: Lectures at the Collège de France. Nova York, 2003, p. 243.
- Ibidem, p. 249-250.
- Ibidem, p. 243-244.
- Ibidem, p. 245.
- DELEUZE, Gilles. Postscript on Control Societies, Negotiations. Nova York, 1995, p. 180.
- MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. The Communist Manifesto. Londres, 2002, p. 225.
- DERRIDA, Jacques. Economies of the Crisis. Stanford, Califórnia, 2002, p. 70.
- Ibidem.
Peter Szendy
Filósofo e musicólogo francês. Professor de ciências humanas e literatura comparada David Herlihy da Brown University.
João Castilho
Artista, trabalha com fotografia, vídeo e escultura.
Como citar
SZENDY, Peter. Tempos virais. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 15 abr. 2020.
Tradução de Henrique Souza Lima.