UMA FLORESTA
QUE QUEIMA
Texto de Fábio Zuker
Escrevo estas linhas ainda em 2019. O ano não acabou e já é possível considerá-lo catastrófico para a Amazônia brasileira. Passei grande parte dele na aldeia Tupinambá da Cabeceira do Amorim, localizada no interior da Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns (Oeste do Pará). Quase todas as noites Ezeriel e eu assistimos ao Jornal Nacional na televisão da sala de sua casa de paredes sem reboco, comumente atravessada de redes. Redes por todos os lados. Das mais diversas cores, tamanhos e formatos. Não se vê sequer uma cama na habitação que Ezeriel compartilha com sua esposa, a Cacica Estevina, importante liderança indígena. Seus filhos e filhas já constituíram família e deixaram a casa. Alguns moram na cidade de Santarém. Outros em Manaus e Macapá. Outros ainda vivem na aldeia e são exímios caçadores. Voltam todas as noites à casa onde cresceram acompanhados de suas esposas e filhos, trazendo peixes e caças para serem compartilhados no jantar.
Com aqueles que se juntam a mim e a Ezeriel, acompanhávamos boquiabertos as notícias sobre a disparada do desmatamento na Amazônia. Ezeriel observava a tela de sobrancelhas arqueadas. O diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), órgão responsável pelo monitoramento de queimadas e destruição da floresta, estava em rede nacional chamando o presidente Jair Bolsonaro de “pusilânime e covarde”, após ele questionar a produção de dados do instituto. Seu governo vem, desde o início, desmontando os órgãos de proteção ambiental. Ezeriel comentou baixinho, como se escondesse algo, que as madeireiras queriam retomar suas atividades dentro da Unidade de Conservação — a mesma que ele e demais indígenas Tupinambá e Kumaruara pleiteiam como território indígena ancestral.
Trata-se das mesmas madeireiras que por décadas dilapidaram o território Tupinambá e de outros povos indígenas e ribeirinhos da região. Hoje elas contam com o apoio de alguns moradores da reserva e retomaram a derrubada de árvores na comunidade de Nova Canãa. Os Tupinambá, em suas 20 aldeias, estão preocupados. Querem logo demarcar o seu território, para geri-lo de maneira autônoma e expulsar os madeireiros. Mas os ventos não sopram a favor dos que se empenham na defesa de rios e florestas.
Dos dados coletados por satélites à experiência cotidiana da destruição. É precisamente nesta tensão entre escalas que tento escrever sobre o desastre, sobre o destino da floresta e de suas formas de vida. Os números não bastam. Eles são insuficientes para dar conta do que ocorre hoje na Amazônia.
A transformação da floresta em soja
Poucos dias depois de assistirmos da aldeia a cruzada de Bolsonaro contra as mensurações de desmatamento, atravessei o rio de volta a Santarém. Cerca de dez horas de barco. O Tapajós é um rio largo, e a região em que se encontra com os rios Amazonas e Arapiuns, no chamado Lago Grande, possui dimensões oceânicas. Daí a sensação de ser um pontinho no meio do mar, mesmo estando no coração da maior floresta do planeta.
Também aqui redes se emaranham no convés do barco. Quando tem tempestade, ou mesmo quando o vento se intensifica, o que não é raro, é preciso encontrar algum tipo de pilar para se agarrar. Do contrário, o vai-e-vem das ondas torna impossível permanecer nas redes. Usualmente, aproveito o tempo sem comunicação nenhuma para papear com as pessoas, dormir e ler. Neste dia, porém, um estranho cheiro de queimado me colocou em alerta. Acreditei que via, também, um pouco de fumaça vindo da outra margem, por trás da Floresta Nacional do Tapajós, a Flona. Mas não tinha ideia das proporções do incêndio ao redor da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém. Comentávamos no barco sobre o cheiro de mato queimado, um pouco instigados. Mas do nosso ponto de vista, de quem atravessa um rio vindo de longínquas aldeias indígenas para à cidade, a fumaça e o cheiro de queimado pareciam acontecimentos locais de dimensões controladas. Poucos dias depois, a notícia do aumento dos focos de queimadas na Amazônia rodou o mundo como consequência direta do incentivo das ações criminosas de Bolsonaro. Os pontos luminosos no radar se concentravam, como brasas após uma fogueira, na região do “arco do desmatamento”, que vai de Rondônia à Santarém, passando pelo sul do Amazonas.
A expansão da soja na Amazônia pode ser entendida como um processo de transformação na relação entre pessoas e plantas. Trata-se da transformação da floresta tropical multiespécies em monocromáticos campos de soja. Longe de ser uma transformação natural, é uma mudança sócio-política. Um processo longo, e que envolve atores econômicos (como grandes fazendeiros), políticos locais, ilegalismos (como compra de terras de comunidades tradicionais e Unidades de Conservação) e, é claro, fogo. Com o início da época de seca, com a diminuição das chuvas amazônicas, a utilização do fogo se torna o mais básico mecanismo para destruir a floresta.
Diferente de outras vegetações, como o cerrado, que se autoincendeia como forma de recomposição no período de secas, não existe incêndio natural na Amazônia. Ele pode até se expandir acidentalmente, para além da área pretendida. Mas o caminho do fogo é sempre o mesmo: crescer, alastrar-se, converter a multiplicidade de espécies em uma única e mesma substância, as cinzas. Do múltiplo ao um. Do heterogêneo ao mesmo. Ricas em nutrientes, as cinzas já adubam o solo. Os restos das florestas criam o ambiente favorável ao desenvolvimento da monocultura de soja.
Não apenas a Amazônia está queimando. Em 2019 assistimos atônitos às queimadas na Califórnia, a descomunal destruição causada pelo fogo na Austrália, e até mesmo incêndios destruindo a taiga na improvável Sibéria. A ideia defendida por alguns cientistas de uma nova era geológica, intitulada Piroceno — em que tudo queima, dos campos de petróleo para gerar energia às florestas tropicais — já não soa fora de lugar.
Nas aldeias Tupinambá, na margem esquerda do Rio Tapajós, a soja é “apenas” uma ameaça. Já nas aldeias Munduruku e nas comunidades ribeirinhas à margem direita do rio, a soja é uma realidade — a floresta remanescente, quando existe, está estrangulada pelos campos de soja. Existe um sombrio jogo de espelhos entre as duas margens do Tapajós, marcado por uma temporalidade encadeada, em que aquilo que acontece na margem direita, de mais fácil acesso pela estrada, muito em breve poderá acontecer do lado esquerdo.
Ezeriel, Pedrinho e João, todos indígenas Tupinambá, hoje estão engajados na demarcação do seu território. Como o governo parece pouco sensível à demanda, decidiram agir por conta própria. Em 2017, saímos juntos para a mata. A autodemarcação consiste em abrir a vegetação rasteira, com facões, criando trilhas para facilitar a fiscalização do território. Me coube, como função, operar o aparelho de GPS e escrever uma reportagem, chamando atenção para a empreitada. Talvez eu até tenha tido alguma função como repórter. Operando o GPS, porém, eu era de pouca serventia. Os Tupinambá se guiavam pelo movimento das nuvens. Apesar de pedir repetidas vezes para que me explicassem como o faziam, fui incapaz de entender. Tudo o que posso dizer é que as nuvens possuem um padrão de movimentação a depender do tamanho do rio. Esse fluxo era suficiente para que os indígenas estabelecessem a rota da caminhada, contornando aldeias de povos vizinhos. “Por ali!”, indicavam. Eu olhava para o matagal fechado e não conseguia imaginar como adentraríamos aquela profusão de tiriricas cortantes, capins e demais “ervas daninhas” que enredadas nas árvores de maior porte pareciam constituir uma barreira.
Mas nem sempre foi assim. “Se for pensar bem, eu mesmo já fui um desmatador”, desabafou Pedrinho comigo. João, por sua vez, ainda possui um certo orgulho de ter caçado muito neste mato para alimentar os trabalhadores da empresa Santa Izabel. Ele relembra a época como um tempo áureo de sua juventude, em que tirava um salário derrubando madeira, e outro como caçador. “Era eu que sustentava esses funcionários”, comenta comigo, enquanto prepara farinha para vender na cidade.
A verdade é que toda a aldeia Tupinambá de Castanhal Cabeceira do Amorim, e parte das aldeias vizinhas, parece ter em algum momento trabalhado para a madeireira Santa Izabel. Os indígenas possuem uma memória clara da atuação da empresa, que se retirou do território com a criação da Reserva Extrativista, em 1998. Cortavam árvores de grande porte, como ipês, mandioqueiras, angelis e melancieiras. Para João, por mais que a madeireira tenha atuado, ela não chegou a retirar nem um terço de toda a madeira existente na floresta. Difícil pensar em algo mais perverso. Um ator econômico privado que se vale de um mecanismo de sedução para transformar aqueles que dependem de um determinado território em seus próprios depredadores.
Pouco a pouco, os Tupinambá foram percebendo que a floresta ia embora e com ela, as caças. Por mais que eles obtivessem algum tipo de dinheiro trabalhando para a madeireira, a devastação causada por esta atividade logo tornaria impossível a vida dos indígenas na região. Dependeriam mais e mais da cidade, tanto para comida quanto para remédios. Com a derrubada da selva, entreviram a emergência de um problema: na cidade, viver é custoso. O contraste entre a vida na aldeia e na cidade me foi formulado com clareza pela Cacica Estevina: “aqui o mato dá tudo, comida, nossa caça, nossa roça. Na cidade, tudo tem um custo. Se falta vinte centavos para um remédio, ninguém mais vende”.
No curso do rio Tapajós, pessoas, rios e florestas estabelecem uma relação de co-formação, de constituição mútua. Não são indígenas que vivem em um determinado território. Mas pessoas cujos corpos se formam, na medida em que compõem territorialidades, nas atividades de caça, de visitas a parentes, de plantio e pela cura através da herbolária. Esse processo se evidencia nos conhecimentos ancestrais e nas próprias formações geológicas, como as imemoriais terras antropogênicas (chamadas de terra preta de índio).
Sem renda, e com a dilapidação de suas florestas, os indígenas Tupinambá seguramente seriam integrados à moderna sociedade brasileira. Mas esta integração se daria em seu estrato mais baixo. Megaron Txucarramãe é um dos mais conhecidos líderes indígenas do país. Kayapó da bacia do Xingu, ele ganhou proeminência pela oposição ferrenha à barragem do rio pela usina hidrelétrica de Belo Monte. Eu o entrevistei durante o Acampamento Terra Livre de 2018, no momento em que Bolsonaro ganhava projeção na corrida presidencial: “se ele integrar o índio na sociedade do branco, o índio vai viver pior do que as pessoas que moram na favela, do que sem-teto, do que sem-terra. Muitos índios não têm preparo ou estudo para sustentar a sua família [na cidade]. Na aldeia, na terra dele, o índio sabe fazer as coisas que tradicionalmente aprende e vem fazendo até hoje. Na sua terra, no seu lugar”. O cacique Kayapó faz um alerta: “integrar o índio na sociedade?! Vai morrer índio, índio vai acabar”.
Nas comunidades localizadas à margem direita do Tapajós, como Piquiatuba dentro da Flona, a realidade é diferente da Tupinambá. A soja sitia a floresta. Remerson Castro Almeida, líder comunitário responsável pela pousada comunitária e pela limpeza da escola, teme, justamente, que o que sobrou da floresta venha a virar soja. “Aqui está muito mais quente do que antes, e agora vemos aqui na comunidade uns bichos que nunca antes tínhamos visto”. Ele suspeita que o uso de agrotóxico esteja expulsando os animais de dentro da floresta para a comunidade à beira do rio. Em um mundo cada vez mais quente, os campos de soja são verdadeiras máquinas de produzir calor. O calor atravessa cerca de 50km de floresta que separam Remerson do sojeiral, e dificulta a rotina de trabalho na roça, diminuindo a produção. Se antes ficavam até meio dia trabalhando na terra, hoje às 10h30 ninguém mais aguenta a quentura do dia.
A Flona foi criada por decreto durante a Ditadura Militar, em 1974. Com 527.319 hectares ela abrange os municípios de Belterra, Aveiro, Placas e Rurópolis — todos no Pará. O projeto do governo era um só: desabitar a floresta. Fazer uma floresta sem pessoas. Dar concretude ao imaginário ocidental sexista de uma floresta virgem. Os militares queriam transportá-los para a Serra do Cachimbo. Transportar pessoas como cargas. Assim como os militares fizeram com diversas populações indígenas.
Seu Milton lembra com detalhes da luta pela permanência no local, embora lamente que com a criação da Unidade de Conservação não possa vender sua terra para grandes fazendeiros. Por outro lado, chama a atenção para a fartura do que outrora foi a vida junto a floresta: “tinha muita caça naquele tempo, veado, caça pequena. Naquele tempo pescava muito, com carniça e flecha. Hoje nem sei se ainda tem queixada, foram tudo embora fugindo da queda das árvores”. Já Seu Tarcilo, que também participou das mobilizações pela permanência dos moradores na selva, hoje tem uma opinião mais alinhada ao governo Bolsonaro. Para ele, Ibama e Icmbio “prejudicaram muito, muito muito, a formação do povo do Tapajós. Parou tudo!”. Ele fala na indústria da multa ambiental, cerne do discurso anti-ambientalista de Bolsonaro, e acredita que se não tivesse a Flona as pessoas estariam muito melhor, com a floresta transformada em descampados destinados à agropecuária. Um ponto da sua fala me detém: “com a chegada da luz, já não tem mais aquelas visagens de antigamente”. Os fantasmas se foram.
Insisto em refletir sobre a destruição das formas de vida na região do Baixo Tapajós a partir da relação entre pessoas e plantas. As plantas não estão simplesmente aí, para serem utilizadas, conforme o interesse humano. Plantas fazem mundos. Elas são criadoras de realidades. Com elas, os indígenas do Baixo Tapajós parecem manter uma relação mais próxima ao âmbito do parentesco. Não-utilitária. As práticas dos indígenas, a composição mútua entre pessoas e território, colocam em xeque a ideia do especialismo humano, do ser humano como único, diferente e separado do mundo ao seu redor, que caberia dominar. Neste caso, é nas plantas que se dá a mediação entre territórios e pessoas; são as plantas que fazem com quem territórios e pessoas só existam em conjunto — amalgamando os dois termos, impondo à nossa linguagem o desafio de descrever uma relação entre partes não opostas.
A luta indígena é uma luta pela existência, mas por uma existência diferenciada. Pelo não deixar-se diluir em uma cultura englobante branca. O mono, de monocultura da soja, deve ser levado a sério como proposta política de erradicação da diferença. As florestas, nesse sentido, emergem como os maiores aliados dos indígenas.
Elegia a um rio amazônico
As vezes penso neste texto como uma elegia, mas logo me detenho. Como gênero, a elegia é uma despedida, o remorso em nome de alguém que se foi por já estar morto ou distante — tendo abandonado a pessoa que escreve. Entender esse texto como uma elegia ao rio Tapajós, seria como assinar um atestado de óbito — para o qual não tenho poder algum.
Mas não faltam motivos para afirmar que o rio Tapajós esteja morrendo. Ou melhor, que ele está sendo assassinado. Hidrelétricas. Garimpo. Desmatamento. Derrocagem. São apenas algumas. Como paisagem, o Tapajós é tão natural quanto um construto humano.
É preciso questionar o que pode a escrita no atual momento pelo qual passa a floresta amazônica. É preciso refletir sobre as implicações éticas e políticas de como narrar a destruição. A escrita, antes de tudo, se converte em uma investigação acerca da linguagem da destruição. Terá o mundo que se esfacela linguagem para narrar seu próprio assolamento? Tento alçar à superfície do texto um feixe desses outros mundos. A riqueza de um mundo que se destrói e suas estratégias de refazimento. Constante refraseamento das condições de vida que lhes são impostas.
Dona Teca, uma das mais antigas moradoras de Piquiatuba, olha de sua casa para o rio. Gostamos de apreciar juntos o pôr-do-sol pela ampla abertura da sua cozinha, com vista para as águas. De noite, dormimos embalados pelo ritmo das ondas. Contrastando com a calmaria do momento, ela lamenta os efeitos da construção das hidrelétricas no rio e em sua vida: receia o aumento de doenças e a fuga dos peixes. “O rio mudou de cor, está mais escuro”, comenta. Não me vem à mente qualquer resposta. Eu silencio.
Fábio Zuker
Jornalista e antropólogo, é autor dos livros Em rota de Fuga: ensaios sobre escrita, medo e violência (Hedra, 2020) e Vida e morte de uma baleia-minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia (Publication Studio SP, 2019).
Como citar
ZUKER, Fábio. Uma floresta que queima. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 04 mar. 2020
Este texto é parte da pesquisa de doutorado em Antropologia Social na USP que o autor realiza no Baixo Tapajós, focalizando a destruição dos territórios indígenas e suas formas de resistência. A pesquisa é realizada com o apoio da FAPESP.