UMA PAUSA NO
TEMPO DE OGUM
Texto e imagens de Wenderson Carneira
Onde nasci nasce também a energia de Ogum, no estado em que nasci nasce também a energia de Ogum. O carvão vegetal, mineral, o ferro e o aço. Em outros estados existem petróleo, portos e containers. Estações de pouso, veículos, matrizes de eletricidade e localização, minhocas gigantes que atravessam a terra. O que vejo em todos esses lugares são máquinas de guerra ainda coloniais e modernas. Afinal, estamos lutando contra quem? Estamos lutando contra a própria humanidade?
Ailton Krenak escreveu no livro A vida não é útil: “O planeta está nos dizendo: ‘Vocês piraram, se esqueceram quem são e agora estão perdidos achando que conquistaram algo com os brinquedos de vocês’. Pois a verdade é que tudo que a técnica nos deu foram brinquedos. O mais sofisticado que conseguimos é esse que bota gente no espaço; e também o mais caro. É um brinquedo que só dá para uns trinta, quarenta caras brincarem. E, claro, tem uns bilionários querendo brincar disso.”
A cultura modernista e contemporânea colonial não consegue abranger nossas existências e está destruindo o mundo que conhecemos junto a uma branquitude que se espalha pelo continente. Estou entendendo um corpo que nega as normas de gênero e sai de meios rurais colonialistas para as pequenas cidades e metrópoles como formas referenciais de se existir. Eu acreditava que parar o mundo iria transformá-lo em algo melhor, em outra possibilidade de vida. O mundo “parou” e, no entanto, continuamos alienados sem nos entender bem diante da sociedade. Digo continuamos, porque até então os formatos de agir e existir continuam os mesmos.
Sou principiante na umbanda, e antes da pandemia de Covid-19 chegar ao Brasil, começava a manifestar minhas conversas e modos de sentir com as entidades. Nascendo como nasci, dentro de uma comunidade cristã e rural, ainda sob rígidos moldes coloniais, demorei a perceber o arranjo global da minha região e do mundo. Junto às entidades, anunciei em mim esse arranjo e a energia de Ogum que daqui em diante me iniciava. Sou uma engrenagem pequena nesse fluxo, uma gota de sangue no meio desse mar global de ferro. A internet, nesse ponto, foi fundamental.
O que tenho vivido aqui, todavia, são inúmeros anos e tempos não contabilizados pela internet nem pelo tempo colonial e ultrarrápido contemporâneo. O que tenho vivido é a força de me alinhar à força global de Ogum desde os primórdios da produção do ferro até a produção do aço e toda a tecnologia que vivemos neste plano carnal e material. Escrevo de um ponto de vista comunitário, ancestral e espiritual, e tento abandonar aqui os academicismos que a arquitetura, o design e o urbanismo me ensinaram.
Não me considero filha de Ogum – do modo oficial dentro do candomblé ou da umbanda – não tenho a cabeça feita, não cresci aprendendo de formas nomeadas. Pelo contrário, nascemos aqui esquecidas, nasci pequena, sucessora de acordos e violências passadas a mim. Considero Ogum um de meus pais, como outros Orixás, pais e mães que me ensinam sobre ancestralidade e sobre formas de viver.
Nasci em meio à precariedade social e global do vale do Jequitinhonha, historicamente extraído pela colonialidade e a neocolonialidade. Os mais velhos aqui ainda acreditam no que foi imposto pelos tropeiros há anos atrás, de um modo que só é possível de se acreditar pela vivência rígida e contínua de dizimação, desinformação e pobreza. A branquitude, junto às empresas que aqui se instalaram no século passado, veio como uma das formas de se ascender, de conseguir alcançar educação, emprego e acesso frente ao mundo. A ultra informação deste século veio como forma de elucidar nossa vivência estagnada em séculos passados, como também de confundir.
Depois de me entender nesse contexto, a luta começou a ser contra os moldes de branquitude cristã que me adoeciam dentro da própria família. É difícil dialogar com meus antepassados, que me causaram dor e trouxeram violência ao nosso convívio, e em meio a planos de sobrevivência se recusam ao novo, por não suportar mais violência ou mais desgaste psicológico. Sou o pico dessa alta montanha. Traçar estratégias de sobrevivência e ascensão em um contexto de exploração ainda presente, apoiado na pobreza informacional e no apagamento histórico, é extremamente desgastante. Traçar estratégias de acesso educacional nacional e global é ainda mais complicado.
Depois de anos morando na capital do estado de Minas Gerais, com a pandemia, voltei a viver em minha cidade natal. Por meses tenho entendido os métodos vitoriosos de sobrevivência regional e, no histórico da minha família, também os erros de embranquecimento pelos quais passaram. Os moldes do mundo moderno e contemporâneo foram demais para o entendimento dos antepassados envoltos em um cotidiano rural colonial cristão resistente. Me questiono até que ponto devo tocá-los com todas essas questões que hoje me atravessam, essa bagagem e linguagem metropolitana, que não é daqui e que chega para modificá-los novamente.
Entendo isso ao me ver sozinha e não posso culpá-los por terem passado por uma socialização de embranquecimento – necessária e advinda tanto da colonialidade como das empresas que dominam a região – mas tenho os alertado. Sobreviver e ansiar por conhecimento, estabilidade e acesso não pode ser uma culpa, e aqui tenho presenciado algumas estratégias para que eu entenda a nossa história e não continue a replicá-la.
O nosso embranquecimento e essa réplica vieram da entrega do nosso povo a esses moldes, da desinformação, do vislumbre que o enriquecimento e o capital criam sobre as mentes, e também de todas as armas e estratégias para se moldar: a igreja, o capital, a arquitetura, o academicismo, a política, o empreendedorismo, a economia, a sexualidade e o gênero.
Se não discutíamos de forma ampla outras formas de vivência e ascensão além daquelas que mais conhecemos pela branquitude, como então se reconhecer e modificar sua vida diante desse país que finalmente conseguiu emergir consideravelmente com suas reais necessidades e imagens do social? Digo pelos cargos, pelas novelas e pelo audiovisual brasileiro. Essa foi uma das poucas ferramentas que me trouxeram até aqui, em meio a uma comunidade com o nosso histórico.
Não culpo minha mãe, meu pai ou meus avôs por não terem entendido tudo isso pois, ainda para mim, em contato pleno com a informação e o estudo acadêmico, ainda é difícil. Também não posso culpar as gerações futuras que chegam a esse mundo caótico e veloz e não conseguem entendê-lo. Nós lhes devemos essa pausa.
Uma vez ouvi das entidades que minha força de alcance e resistência vem do nosso povo e da capacidade de transformar terra, água, ar e fogo em plantações, barro, carvão e aço. Além de tudo o que nos acontece, há também o longo processo histórico de resistência do Vale do Jequitinhonha. Nosso psicológico foi construído assim. A partir de então, vi tudo diferente. A resistência de meu pai, operário desse sistema de extração, permanecendo firme frente às máquinas gigantes mecânicas e eletrônicas. Consegui ver a resistência de minha mãe diante da força de homens operários e mecanizados. Vi também a resistência de minhas irmãs ao lutarem contra a sociabilização machista. Percebi como nosso povo mostra força ao lidar com as dinâmicas impostas desde a criação do Vale do Jequitinhonha e todo o maquinário necessário para ali existir, trabalhar e conseguir dinheiro, educação e vida digna. Conectando cidades, metrópoles e globalização, vejo como o mundo e os corpos têm criado resistências ao maquinário inventado para que estejamos aqui.
Às vezes sinto que a energia e responsabilidade de Ogum são densas demais para mim. Estou envolta em quilômetros de plantações de eucalipto, fornos de barro, máquinas, metalúrgicas, poeira e fuligem. Quando olho por cima disso tudo, vejo um corpo sensível lutando contra a resistência corpórea, psicológica e mecânica de um lugar. O rio que corre no meio da cidade é sujo e estou há quilômetros de mares, florestas naturais e alguma fonte limpa de energia. O que resta é o fogo.
Estou cansada de usar a resistência do meu corpo, da minha mente e do lugar e para conseguir me renovar e não morrer sufocada na solidão identitária que me lembra da infância.
Hoje me denomino Jequitinhonhense como forma de re-criar uma identidade apagada do Vale pela branquitude global. Aqui, ainda se vive o sonho de alcançar o progresso branco e a tal infraestrutura necessária para se viver bem, em um imaginário de mundo desenvolvido. São inúmeras as temporalidades negligenciadas que se cruzam no avanço, cada vez mais rápido, da humanidade. Já eu, vejo o tempo como grandes veias.
Ser jequitinhonhense é ser atravessado pela rota de bandeirantes tropeiros e pelo embranquecimento imposto a aldeias, quilombos e comunidades remanescentes indígenas e negras. É estar imerso na imposição de se urbanizar, permeado pelo processo de mineração e extrativismo, mergulhado em empobrecimento e extração. É olhar para uma restituição nunca acontecida, um cotidiano vazio de novas memórias informacionais e culturais. Pensemos que projetos coloniais passados residem em diversos níveis de tempo e em diversos espaços, metrópoles, cidades, distritos, vilas e vilarejos espalhados pelo Brasil. As formas de acesso ainda controlam os fluxos informacionais de limpeza colonial e modificação da norma passada e presente.
Mesmo assim, ainda tento vivenciar minha essência de um corpo que se recusa à binaridade, à diferença queer e a todo sistema de categorização humana ou qualquer estranheza que a sistematização em uma sigla ou palavra cause. As poucas leis que sigo são as de transformação energética no meu interior e as de não alienação a nada imposto pelo mundo. Sem alinhamentos, mas inspirações, pulsações e autocombustões constantes.
O que permanece ainda em mim é a caracterização de onde nasci e as cargas às quais fui exposta desde a infância. A construção humana do “primeiro mundo” nada mais é que a representação de uma civilidade branca distante de minhas origens e de muitas outras desse país e continente.
Ainda quero caminhar para um lugar onde poderei abandonar tudo isso por um momento e viver as singularidades que escolhi junto às minhas irmãs, que também se despertam nesse mundo em diferentes locais e de diferentes formas em nossa revolução global. Para abandonar tudo isso e parar o mundo cruel, preciso evidenciar a força de Ogum, tanto como seus meios de desenvolvimento diante do mundo. Um mundo ainda em construção.
“As diferentes narrativas indígenas sobre a origem da vida e nossa transformação aqui na Terra são memórias de quando éramos, por exemplo, peixes. Porque tem gente que era peixe, tem gente que era árvore antes de se imaginar humano”, continua Ailton Krenak. Vou sendo conduzida com maestria por planos antepassados a mim. Os espíritos das florestas, das terras, das águas e os caboclos me protegem enquanto estou imersa nessas florestas artificiais fundiárias e de plantações extrativistas do aço global. Escrevo honrando essas linhas e correntes energéticas que adentram as vastas veias e plantações da civilização. Continuo a pulsar.
Tenho reivindicado esses espaços como nossos, entendido o histórico de sangue ancestral feito sob mãos europeias, multinacionais e empresariais. Como historicamente pertencentes a esse continente e a tudo o que o futuro nos reservará por direito. Me fazem cabocla de aço rompendo em ferro esse tempo e aqueles que nos devem. Até porque o tempo não é somente o do agora, planejado para daqui a 2 ou 3 anos, mas o tempo ancestral.
Ogum são os caminhos da civilização. Ogum também são minhas estradas de nascença. Ogum é o meu guia de entendimento da civilização que é e que virá. Ogunhê pai, saudações mãe, lhes ofertarei essa carne que aqui está em troca do pedido de um mundo novo. Enquanto isso, lutarei com ela pelo mundo que acredito. Um dia não serei mais esse corpo armadura em meio a uma sociedade armadura. Matarei a carne que vive em mim e me transformarei em algo que virá.
Pai Ogum, o humano se perdeu, está lutando um contra o outro, um contra a fortuna do outro. Enquanto isso, usa o resto da população, aprisiona meu corpo nessa casca de homem. Eu me recuso a ser homem, eu me recuso a viver esse sistema de gente gananciosa e burra.
Feche os caminhos dessa civilização doente, impeça-os de destruir a terra como a conhecemos.
Que haja pausa no tempo dos homens, que haja pausa no tempo daqueles que nos administram de forma gananciosa e ordinária. Eles ainda não sabem viver em harmonia, eles ainda não sabem viver juntos sem destruir a terra, sem destruir o outro, sem destruir a diversidade.
Ogum, construtor dos caminhos desse mundo inteiro, permita que nos embelezemos e nos melhoremos como seres vivos antes do fim e deixemos de ser tais humanos.
Não é necessário explicar a desgraça a que fomos postas nesses últimos tempos pela ganância empresarial e a organização humana. Minas Gerais se viu enlameada pela exploração mineral, nos endividamos tentando acompanhar o mundo, criamos todo tipo de estratégia sistêmica para viver, intoxicamos a terra, poluímos os mares com plásticos e aquecemos e sujamos o ar como nunca antes. Estamos lutando contra distopias e desgraças maiores.
O ano de 2020 tem sido um momento para repensarmos esses valores tecnológicos que utilizam o ecossistema. Como as cidades podem nos sustentar sem se sucatear? Como podemos criar uma vivência e uma civilidade não branca eurocêntrica? Eu realmente preciso de uma cidade que saiba tudo o que faço e que me controla? A humanidade branca criou todo tipo de controle para estagnar sua própria força de destruição?
Precisamos de uma pausa no tempo de Ogum até que os humanos tenham consciência do universo e da destruição que vêm causando. Haverá trajetos que façam esses humanos entenderem a vida de forma diversa, digna e preservada, tanto como nossa evolução será. Agimos como se precisássemos construir mais estruturas ao invés de nos transformarmos em estruturas necessárias à adaptação. Não precisamos de mais, precisamos acordar o que já existe.
A sabedoria do aço, a ciberenergia, chegou ao mundo como nunca antes. Estamos lidando com a velocidade e organização estrutural nunca presenciadas neste planeta. Revolucionamos a indústria, produzimos da terra tudo o que nos conecta e nos traga rapidamente notícias de todas as formas de vida do mundo e, ao mesmo tempo, nos alienamos frente à destruição. O Antropoceno, o tempo do ferro e da cibernética nos fizeram seres funcionais, nos impuseram ainda mais filhos homens e mulheres, nos fizeram reprodutores de lixo.
O progresso hegemônico branco mata a biodiversidade entre nós, discretamente coloca uma aura de alienação sobre nossas cabeças para ir passando com esse tal progresso disciplinado. A tecnologia reitera a ilusão e a falta de verdade com o todo. Junto com os iluminadores deste mundo vieram os modernistas e a função. Depois me fizeram contemporânea. Não sei se devo ser um corpo funcional em todo meu tempo de existência.
São veias abertas. O lixo não é apenas ocidental, vem de todas as partes, inclusive através de cargas grandíssimas de tecnologia do Oriente. Este continente, que se esvai em containers e trilhos, precisa saber o que sai daqui e o que poderia ser construído com o nosso, como também o que tem entrado, de forma silenciosa. É um alerta constante a necessidade de nos entendermos como espaço geopolítico com suas especificidades culturais e regionais.
O mundo projetado para daqui 100 anos não me agrada, a sistematização do meu corpo não me agrada e essa tecnologia ultra inteligente parece, para mim, só mais uma forma de normalizar e sistematizar um humano vazio de diversidades, vivências e emoções. Uma tecnologia que cria suas bases em reações sintéticas e superficiais, sobre moldes ideológicos e imagéticos de uma minoria privilegiada, eurocêntrica, norte americana e agora Oriental – etnocida. Os privilégios passam a ser informacionais e regidos pela quantidade de dados que você consegue processar, a nossa consciência é comercializada em dados e a gamificação da vida recompensa nosso cérebro com competições sistemáticas.
Estamos falando sobre o futuro e como isso pode nos afetar, afetar corpos que não veem o avanço tecnológico como uma possibilidade para a vida. Esse avanço pode representar a radicalização do controle social que já vivemos, governos cada vez mais autoritários e formas não democráticas de acesso e sociabilidade. Devemos começar a discutir como tratar a tecnologia e a urbanidade de forma mais democrática e ampla, como repensar e pausar o desenvolvimento rápido e compulsório. A América Latina vem evidenciando políticas tecnológicas que não consideram corpos dissidentes. A urbanização compulsória está produzindo corpos funcionais cada vez mais embranquecidos nos padrões de vida globalizados e consumistas. Meu corpo, fora de padrões de gênero, deve ser categorizado e enquadrado em uma norma e sistematizado?
O imperialismo assume novas faces frente às necessidades ocidentais de produção: as redes sociais, os padrões de vida, as marcas e todo o aparato de territorialização dos países ditos desenvolvidos estão sendo jogados dentro desse espaço de forma silenciosa. À medida que utilizam a terra e o nosso território, as leis de consumo têm criado destruição em nossos ecossistemas e nossas etno-características, sem se importar com o fato de serem fundamentais a outras entidades e existências que fogem àquela da norma humana ocidental. As singularidades de um corpo cada vez menos humano como o meu parecem ter prazo de extinção em meio a tudo isso.
O mundo tem se lançado em prever futuros cada vez mais tecnológicos focados na nossa baixa qualidade de vida, no controle e no esgotamento dos recursos naturais, e a sociedade atual apresenta indícios de como tem caminhado sem as percepções do outro lado da moeda: a criação da Google antes da virada do século e seus desdobramentos, o empreendedor bilionário Elon Musk apresentando seu chip cerebral, a tecnologia 5G, 6G, redes sociais sob controle de políticas públicas sem a participação do estado, a China utilizando formas de ranking social e bônus no controle de seus cidadãos.
Um exemplo imagético maximizado disso é o lançamento, em dezembro de 2020, do jogo Cyberpunk 2077. O jogo parece conseguir demonstrar a vida sintética tecnológica, energética e robótica em nossos corpos e a precariedade e o sucateamento humano diante do capitalismo e do desenvolvimento artificial no presente/futuro distópico. Intencionalmente, propõe representar a maximização do controle e do poder de corporações e de super-ricos que baseiam ideologicamente suas produções nesse tipo de “evolução humana” e no “melhoramento” e na potencialização das funções fisiológicas desses corpos, como a modificação dos espaços urbanos para se adequar às necessidades do corpo sintetizado.
Com a maior consolidação do capitalismo na América Latina, estamos presenciando o surgimento dessas estéticas, formas de vida e sistematizações; propagandas monumentais em prédios, em prol da comercialização privada, o corporativismo, a gamificação da cidade e da vida, um pensamento não comunitário, hierárquico e violento e a disputa por espaços exponencialmente maiores de audiência e exibição da espetacularização do jogo capitalista.
No último centenário, a Times Square, conhecida como a encruzilhada tecnológica do mundo, foi a representação concreta desse tipo de desenvolvimento na América contemporânea, pelo consumo e seus impactos urbanos e globais de espaço, energia, rejeitos, circulação, visibilidade e engajamento, sem que saibamos ao certo as consequências ecossistêmicas dessas ações sobre os corpos e mentes. Nesse histórico, estamos sendo influenciadas e levadas por uma onda de frenesi desajustada e inapropriada de mundo, contra nossa real vontade de regeneração ao nosso histórico colonial, promovendo um grau de desigualdade social ainda maior.
São cidades cada vez mais sucateadas em cimento e metal, corpos e morte biológica. A memória é cada vez mais fragmentada pela informação e pela quantidade de caracteres e espaços digitais disponíveis. Os carros voadores são a nova promessa do capital para quem ainda nem sabe lidar com seus viadutos e rios encanados. Enquanto isso, as naves que saem da terra deixam seu rastro e a funcionalidade do aço parece servir apenas ao progresso visível aos bons olhos do metrô.
Pensar arborismo, ciclofaixas, movimentação e saneamento básico para uma metrópole tão vasta além dos centros parece mais um assunto a ser engavetado pelo Estado e por quem tem poder frente ao nosso desenvolvimento. O centro é bonito, turístico e rentável…, mas eu não quero andar de bike só no centro.
Já as cidades que imagino nesse presente e no futuro são trans, travestis e transmutadas. São feitas de barro, tijolo e metal, marrons como a terra que as proveu, tecnológicas como qualquer outro prédio branco e espelhado. Vivas, abundantes, pulsantes como nosso sangue, coloridas como nossas peles, energizadas e floridas como nossas corpas-flores. São cybermacumbeiras, caboclas e camaleoas. Até porque, o que é que faremos com todas as habilidades que conseguimos até aqui para sobreviver ao fim do mundo?
No livro Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak diz: “Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter. Para que não fiquem pensando que estou inventando mais um mito, o do monstro corporativo, ele tem nome, endereço e até conta bancária. E que conta! São os donos da grana do planeta, e ganham mais a cada minuto, espalhando shoppings pelo mundo. Espalham quase que o mesmo modelo de progresso que somos incentivados a entender como bem-estar no mundo todo. Os grandes centros, as grandes metrópoles do mundo são uma reprodução uns dos outros.”
Sei que pai Ogum tem muitos planetas, mas neste aqui eu me recuso a ser um ser funcional de aço. Ainda quero continuar de barro e carne, abandonar a carne, sentir a terra e me embelezar de Oshun, de tupã, das matas de Oxossi e do que mais me foi tirado. Quero brilhar com a bioluminescência da terra, da vida natural e orgânica das matrizes que se refazem.
Sustentar em nosso corpo essa energia elétrica ainda não é possível. Meu corpo não é máquina de aço, mesmo sendo sentinela. Mas há de ser híbrida e sustentável, há de ser possível um dia descobrir em nossas corpas e mentes essa energia. A ciberenergia estará em meu corpo e me fará brilhar um dia, meu pai, mas nós humanos ainda não temos o conhecimento que nos faça entendê-la e recebê-la em comunidade.
Quero poder precipitar nosso futuro em chuvas abundantes e terras férteis, nós que estamos vivenciando desgraças sem precedentes e feridas profundas. Quero precipitar caminhos regionais, continentais e globais de cura. Temos todos os recursos a nos remontarmos no novo, no primeiro, na origem do nosso primeiro mundo. Abya Yala. Precisamos da pausa, pai Ogum.
Wenderson Carneira
Nascida no vale do Jequitinhonha, é estudante de Design na UFMG, artista visual, produtora cultural e pesquisadora. Usa de modelagem 3D, instalações, mídias diversas e de outros cyberprocessos como formas de organização, cura e criação de estéticas e vivências anti-coloniais. Foi diretora criativa da festa manifesto Mientras on fire — Cyberfuturista latina em 2019.
Como citar
CARNEIRA, Wenderson. Uma pausa no tempo de Ogum. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 10 dez. 2020.