VOCÊ ESTÁ
ME VENDO?
Texto de Tuíre Kayapó
Vândalas mascaradas, desenho da série de Sophia Pinheiro
Tuíre Kayapó foi uma liderança indígena do povo Mēbêngôkre. Este ensaio é uma homenagem à sua memória e à sua luta como defensora dos direitos indígenas. Nele, ela reflete sobre o momento em que, ainda muito jovem, participou do 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu em Altamira, em 1989. O motivo principal da reunião era a apresentação do projeto da hidrelétrica da Eletronorte, hoje Belo Monte, para os povos indígenas e ribeirinhos do rio Xingu. Ao escutar a apresentação, Tuíre atravessou o ginásio do evento com sua voz e seu facão em punho em direção ao rosto do então diretor da empresa, José Muniz Lopes.
Enquanto eu crescia, o homem branco já tinha começado a destruição da mata. Já tinham destruído a mata e queriam destruir também o rio. Queriam derrubar o resto da floresta e matar os peixes e os animais. Meu bisavô matou homens brancos para que eles não entrassem na nossa terra. Ele expulsou os homens brancos. A floresta e o rio são bons para os Mēbêngôkre, era onde nós morávamos, por isso nosso bisavô matava os brancos.
Quando eu era apenas uma criança, minha avó me contava sobre isso. Sobre o mato, sobre o rio, sobre a nossa terra. Eu estava pensando sobre tudo isso quando o engenheiro da Eletronorte estava discursando. Por isso eu coloquei o facão na cara do engenheiro. Eu fiz aquilo para que ele me visse e respeitasse a nossa floresta, o nosso rio e o nosso povo Mẽbêngôkre. Para que todos os brancos respeitassem a gente.
Quando eu comecei a ouvir ele falar, eu não gostei. Eu estava com muita raiva, por isso eu não cantei. Quando ele estava falando, eu não gostei, então me levantei e entrei no meio de toda aquela gente. Para ele me ver. Eu coloquei o facão na cara dele, para ele ver o facão. Coloquei o facão na cara dele e falei: “Você está me vendo? Você está me vendo?”.
Eu falei para ele: “Você está muito longe de nós, mas agora você está me vendo, saiba que eu não gosto disso!” O facão já existe há muito tempo. Antigamente já existia o facão e os machados feitos com pedra. Já existia tudo isso, fazíamos flecha, borduna, fazíamos tudo. A mulher mẽbêngôkre já tinha o seu facão e o homem a sua borduna. Minha avó matava animais como tatu, porco, queixada, anta. As outras mulheres também, todas com facão. Por isso eu cresci querendo usar o facão. Todo mundo quer fazer as coisas com o facão. Antigamente, os homens iam lutar contra os brancos e as mulheres iam também. Minha bisavó já tinha o facão e por isso nós mulheres sabemos como usar e vamos continuar usando. Nossas filhas vão aprender e nossas netas também.
Eu cresci na mata e quero que a floresta fique em pé para as novas gerações. A floresta tem um ar puro, bom para respirar. Tem os animais, as aves, os passarinhos, as flores, as frutas, tem castanha. Eu gosto da floresta. Por isso eu fiz aquilo, para que tudo isso siga existindo. Por isso não estão mexendo nas nossas florestas, nem destruindo. Se eu não tivesse feito aquilo, o branco ia continuar destruindo as nossas matas e os nossos rios.
Se o Rio Xingu está limpo até hoje, é por causa da minha luta. O rio não está sujo, está limpo. Os peixes ainda vivem, as pessoas ainda podem pescar e se alimentar. Podemos fazer nossas roças, plantar banana, inhame, mandioca. É assim, eu não gosto de destruição. E novas gerações ainda virão. Novas gerações sempre vão existir. A gente cresce, tem filhos e descendentes. Nós Mẽbêngôkre nunca vamos acabar, nós vamos continuar existindo. Por isso eu não quero a destruição da mata, nem dos rios, nem dos nossos territórios. Essa foi a minha luta.
Naquela época, todo mundo se juntou para ir à Altamira. Iam fazer uma festa, Baridjumokô. Convidaram mulheres, homens e crianças. O meu pai, quando ainda estava vivo, me chamou e disse: “Kôkô, você pode ir com a gente, para você nos pintar para a gente dançar”. Eu já estava com vontade de ir e então falei: “Sim, quero ir”. Éramos muitos viajando pelo rio. Nós viajamos de barco pelo rio e outros foram de avião. Todo mundo se encontrou na aldeia Kikretum e pegamos o caminhão para Tucumã. Em Tucumã, viajamos de ônibus. Da Aldeia Kôkráimoro, também viajaram pelo rio. Da Aldeia Gorotire também, viajaram de Redenção de ônibus. De Kararaô, viajaram de barco até Altamira. Da Aldeia Ngoino, também chegaram de ônibus. Outros parentes foram de avião, e assim nos juntamos todos. E assim foi a nossa viagem.
Ninguém gostaria que mexessem com a sua terra. Nos juntamos e eu coloquei o facão na cara do engenheiro da Eletronorte porque ele estava querendo a destruição de tudo. Acabou essa história de barragem. Acabou por muito tempo. O homem branco quer acabar com a floresta dos Mẽbêngôkre, com o rio. Eu não gosto deles por causa disso. Eu já tinha pensado, antes, em fazer isso.
A minha terra, a terra dos meus avós, da minha mãe, a terra onde eu nasci, essa terra é o Xingu. A terra onde meus antepassados foram contactados, lá eu cresci e me tornei jovem. Mas o meu pai queria que eu fosse para a terra dele, na aldeia Kubēnkrãkêj, então ele me levou para conhecer os meus parentes de lá. Daí o irmão do meu pai foi ajudar a criar a aldeia A’ukre e me levou para lá. Nessa aldeia, eu tive o meu primeiro filho. Mas a terra onde nasci é o Xingu, lá é a minha terra mãe. Por isso eu fico brava quando estão estragando o Xingu. Quero a minha terra sempre preservada.
Eu cresci com a minha avó em Kubēnkrãkêj, depois fui para A’ukre com os meus parentes. Lá fiquei grande e aprendi sobre os brancos. Quando eu estava em A’ukre, fui para o encontro de Altamira. Foi lá que ouvi o branco falar que iria fazer coisas ruins na minha terra no Xingu. Mas essa é a minha terra, não é a terra deles. Por isso, eu peguei o facão e coloquei na frente do rosto do branco. Essa imagem foi fotografada e todos começaram a ver.
Quando eu saí no jornal, o jornalista chegou perto de mim fazendo perguntas. E eu respondi que tinha feito aquilo porque os brancos estavam fazendo um trabalho ruim. Cheguei em Brasília e falei a mesma coisa, para não destruírem a nossa mata e o rio. Se destruírem tudo, não vai sobrar nada. Por isso eu fiz aquilo. Essa é a minha história.
Nossos bisavôs, todos eles foram caciques. Nosso bisavô Betikre foi um cacique matador. O meu bisavô Prikore foi um cacique matador. E hoje eu continuo a luta no lugar deles. Todo mundo me respeita. Todo mundo já me viu e me respeita. Betikre e Prikore eram lideranças que defendiam a floresta, o rio, a gente, para não nos matarem. Agora eu estou no lugar deles.
Eu voltei para a aldeia Aukre e continuei por lá. Depois a minha irmã me chamou para ir à Gorotire e fiquei por lá. O meu filho adoeceu e morreu e continuei por lá. Foi quando começou o movimento para retomar a terra indígena Las Casas. Fui para Brasília lutar com o nosso povo para reconquistar a terra dos nossos antepassados. E agora nós temos a nossa terra de volta. A aldeia Tekrejarotire é a minha terra e vou lutar por ela.
Desde que sou criança, meu avô Betikre passou o seu legado para mim. Ele era um líder, matador de não indígenas, e ele me contou sobre a sabedoria do nosso povo. Que eu teria que lutar para defender o meu povo. Ele era um defensor do nosso povo. Ele me ensinou sobre a nossa cultura. Ele sempre quis o melhor para o nosso povo. Eu agarrei os ensinamentos dos anciãos que meu avô me passou e, hoje em dia, eu luto para proteger todos os indígenas do Brasil. Eu conheço os outros povos, viajo e durmo em algumas aldeias, para conhecer e seguir lutando para a proteção de todos os povos indígenas.
Como eu posso gostar da cultura dos brancos? Como eu posso me acostumar com isso? Eu não gosto da cultura dos brancos, eu sou uma indígena de verdade, que continua a cultura do meu povo. Eu sempre estou com o corpo pintado, o rosto pintado, eu raspo o meu cabelo. Antigamente, raspávamos os nossos cabelos com bambu e, hoje em dia, continuamos a fazer isso. Nunca deixamos de fazer isso.
Construímos uma escola de modo tradicional, de babaçu, onde nossos filhos e netos irão aprender as coisas do mundo dos brancos para nos defender. Nessa escola, os professores não indígenas trabalham em parceria com os indígenas. Lá eles vão aprender a escrever documentos para defender o nosso povo. Se eu morrer, quem vai nos defender? Isso é o que falo para os meus filhos e os meus netos.
Eu nasci em Kokrajmoro. Mas eu estou aqui, na terra dos meus avós, para defender essa terra. Essa terra é chamada de Tekrejarotire, nome dado por meus parentes por causa do formato da montanha (tekre é bunda). Eles moravam aqui e nenhum não indígena vivia nesta terra. Todos os aprendizados que tive dos meus avós estão guardados na minha cabeça, por isso eu continuo defendendo o meu povo, a nossa floresta e a nossa terra contra as políticas deste governo que quer reduzir as nossas terras. Eu não vou permitir. O governo tem que tomar conta de seus próprios negócios e nos deixar em paz.
Quando eles encontraram os nossos avós nesta terra, falaram mal com eles, os maltrataram. Nos encontraram aqui por acaso. Não quero que diminuam as nossas terras nem tratem mal o nosso povo, como se fôssemos cachorros ou outros animais. Sempre pensando no dinheiro e falando mal dos povos indígenas. Mas eles não estão certos, não falariam desse jeito na minha frente.
Nós nunca seremos como os brancos. Eles mentem, espalham mentiras sobre nós. Venham para as nossas aldeias para ver a nossa comida de perto: seguimos comendo açaí como os nossos antepassados. Nós não pensamos apenas em biscoito, refrigerante, arroz e outras coisas que vêm da cultura dos brancos. Nunca deixaremos de comer as nossas comidas tradicionais, mas os não indígenas estão espalhando mentiras sobre nós. Eles não sabem sobre a nossa realidade. Eu como o meu beiju e continuarei comendo.
Os governantes seguem espalhando mentiras sobre nós. Michel Temer assumiu a presidência e alguém da sua família postou um vídeo nas mídias sociais falando que nós indígenas poderíamos morrer porque não éramos importantes. E ainda falou que os nossos pajés não salvam ninguém. O governo tem que estar do lado do seu povo. Por que este governo está falando dessa maneira? Temer tirou Dilma do poder no meio de seu mandato. Tirou o seu lugar e falou mentiras sobre ela. Isso não está certo, não foi correto. Nós Mẽbêngôkre não aprovamos isso. Não gostamos também dessa mulher que falou mal de nós.
Os estrangeiros dão dinheiro para o governo brasileiro e eles deveriam construir casas para as pessoas pobres, asfaltar estradas. Em vez de fazerem isso, tentam diminuir as nossas terras com outras coisas ao redor. Nunca temos projetos realizados pelo governo com o nosso povo, em nossas terras. O governo precisa respeitar as nossas terras, as nossas florestas. É de onde extraímos recursos para nos alimentar, como porcão, bacaba, açaí… temos muitas frutas que os brancos não conhecem. Os brancos têm arroz, o trator ajuda com as plantações. Nós temos a nossa comida na floresta. Eles são desmatadores de florestas.
Estou sentada embaixo de um pé de urucum que eu plantei. Eu me sinto feliz de estar aqui aos pés desta árvore. É fresco. Aqui nós respiramos melhor. Se não tivesse floresta para nos proteger do sol na cabeça, nós nos sentiríamos cansados e respiraríamos mal. Eu vou falar para os indígenas e para os não indígenas: nós não somos aqueles que estão invadindo as cidades, ao contrário. Os não indígenas é que estão invadindo as nossas terras. Os brancos têm muitas doenças, têm malária, diabete, tuberculose. Os nossos antepassados não tinham doenças, mas os não indígenas são como insetos. É isso o que eu falo para o meu povo.
Tuíre Kayapó
Mãe, avó, dona de roça e cacica, foi liderança do povo Mēbêngôkre e defensora dos direitos indígenas. Recebeu visibilidade internacional ao lutar contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, ainda em 1989. Após uma longa batalha contra o câncer de útero, ancestralizou em 10 de agosto de 2024.
Sophia Pinheiro
Doutora em Cinema e Audiovisual e mestre em Antropologia Social, é artista, cineasta e educadora popular. Com a série Vândalas mascaradas, ela pesquisa a autonomia dos corpos e suas confluências não humanas.
www.sophiaxpinheiro.com
Notas
Este ensaio foi editado por PISEAGRAMA a partir de depoimentos selecionados por Julia Sá Earp dos projetos abaixo descritos:
(1) O curta-metragem O gesto facão de Tuíre Kayapó, do Coletivo Beture, dirigido por Simone Giovine, com entrevista realizada por Patkore Kayapó, Simone Giovine e Julia Sá Earp;
(2) O projeto do livro Kubẽ kà kayry: a costura como ferramenta de empoderamento e promoção da autonomia das mulheres indígenas Mẽbêngôkre, coordenado por Carolina Sobreiro, escrito por Bekwynhko Kayapó, Nhakton Kayapó, Kokongri Kayapó, Nhakmakoro (Nhaktak) Kayapó, Tuíre Kayapó, Carolina Sobreiro e Julia Sá Earp e com tradução de Nilson Vicente de Salles, Kokoti Kayapó e Nhakmakoro (Nhaktak) Kayapó;
(3) A tese de doutorado de Julia Sá Earp Entre casas, facões e vestidos: caminhando com mulheres mẽbêngôkre, defendida em 2024 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
Agradecemos a colaboração de Julia Sá Earp!
No desenho da série Vândalas mascaradas, desenvolvida por Sophia Pinheiro desde 2013, Tuíra Kayapó é a entidade central. Ela está com os grafismos kayapó de uma mulher recém parida.
Como citar
KAYAPÓ, Tuíre. Você está me vendo?. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 10 dez. 2024.