NEGACIONISTAS
SÃO OS OUTROS
Texto de Alyne Costa
A ilha, pinturas de Osvaldo Carvalho
Ao nos voltarmos às ciências em busca de verdades universais, imparciais e indisputáveis, talvez estejamos muito mais próximos dos negacionistas do que imaginamos.
Nos últimos anos, nos habituamos a ver o termo negacionismo figurar nas mais diversas teorias, explicações e denúncias sobre as preocupantes consequências políticas da disseminação de fake news, da proliferação de teorias da conspiração e da contestação de fatos científicos e históricos bem estabelecidos. Foi sobretudo no decorrer da atual pandemia de Covid-19, porém, que a palavra garantiu de vez seu espaço nos debates e análises de conjuntura.
Ainda que o fenômeno não seja particularmente novo, o termo é bastante recente: foi cunhado em 1987 pelo historiador francês Henry Rousso para designar indivíduos e grupos envolvidos na negação do Holocausto. O intuito de Rousso era ressaltar o caráter ideológico dessa negação, o que o diferenciaria do revisionismo histórico, motivado por razões científicas legítimas. Essa necessidade de distinguir o científico do ideológico, ou o legítimo do espúrio, que mobilizou o primeiro uso da palavra parece estar no cerne do que permite chamar de negacionismo fenômenos tão diversos quanto a negação do aquecimento global, a contestação da teoria da evolução ou a desconfiança quanto à eficácia das vacinas. É evidente, contudo, que ninguém se diz negacionista: quem acusa os outros de negacionismo vê a si mesmo do lado legítimo da oposição implícita no termo. Além disso, essa divisão um tanto esquemática não dá conta, como lembra a filósofa Déborah Danowski, das diversas “nuances, recobrimentos e incongruências” que permeiam nossa disposição a acreditar ou negar, tampouco das várias formas e dos sentidos que a negação pode assumir.
A julgar pela maneira como o problema vem sendo debatido na esfera pública, talvez possamos pensar as atitudes diante dos saberes científicos como posições organizadas numa faixa gradiente. Num dos polos, que seria o da ilegitimidade e da ideologia, se encontrariam aqueles que Danowski chamou de “profissionais da negação”, cuja atitude é dirigida por interesses políticos, econômicos e ideológicos bem claros. Na outra ponta, a da suposta legitimidade e da neutralidade axiológica, estariam os cientistas, aqueles que não colocam interesses pessoais acima dos fatos que seu treinamento especial lhes permite conhecer (e que o outro lado se esforça para negar). Entre esses polos, estaríamos todos nós, pessoas comuns, mais ou menos inclinadas a aceitar os fatos científicos ou, ao contrário, a aderir ao negacionismo – seja por ignorância, por ingenuidade ou por incapacidade de “receber de frente e de peito aberto todas as desgraças do mundo”.
As diferentes posições nesse gradiente, assim, exploram a ambiguidade da noção de engano, em torno da qual o próprio diagnóstico do negacionismo se organiza: no primeiro polo estariam aqueles que enganam; no segundo polo, os que não (se) enganam; e, no meio, estaríamos todos os que nos enganamos ou somos enganados. Para os que ocupam o polo dois, os profissionais da negação alocados na posição oposta suscitam uma profunda indignação, mas nós, que estamos amontoados no meio, somos vistos com olhos mais benevolentes. O negacionismo é tão mais moralmente condenável quanto mais associado ao enganar que ao enganar-se.
Contudo, diversas pesquisas recentes mostram que o posicionamento daqueles que chamamos de negacionistas (ao menos dos que não lucram diretamente com a disseminação de falsas controvérsias) também é orientado pela preocupação de se proteger do engano. Sua negação costuma ser justificada pela convicção de que aquilo que é postulado como fato não passa de uma mentira ou de um exagero para alarmar a população, consistindo em manobras que mal disfarçariam os interesses nada científicos de certos poderes estabelecidos. Nesse sentido, os autointitulados céticos tendem a se portar como o seleto grupo que, não se deixando enganar, tem o dever de abrir os olhos das pessoas comuns para os interesses escusos por trás dos “supostos” fatos. Os sentimentos de satisfação e orgulho por desvelarem a ideologia mascarada de verdade é um componente fortíssimo da formação das comunidades negacionistas – mas também de muitas outras comunidades, incluindo as que reúnem aqueles que se sentem investidos do dever de acusar a mentira dos negacionistas.
Além disso, uma análise cuidadosa dos diversos posicionamentos negacionistas e conspiracionistas permite compreender que o que seus adeptos negam não é “a ciência”, mas determinadas práticas e enunciados dos quais se duvida que sejam verdadeiramente científicos. Há um ideal de ciência neutra e desinteressada informando a desconfiança por parte desses grupos, e isto não deveria nos surpreender: diversos autores já mostraram que essa idealização está no cerne da organização social estabelecida desde a modernidade. Decorrente da dicotomia natureza versus cultura que caracteriza a epistemologia moderna – segundo a qual a ciência seria a única prática capaz de acessar a realidade objetiva do mundo, todo o resto ficando sujeito às controvérsias e disputas políticas –, tal idealização acomete até mesmo os cientistas.
O problema é que a natureza dos temas que nos preocupam atualmente impede que mantenhamos uma delimitação muito precisa entre ciência e política. O caso das mudanças climáticas é exemplar: porque as descobertas da climatologia envolvem invariavelmente certo grau de incerteza e porque admitir que o fenômeno é real implica ações políticas drásticas, os negacionistas recorrem ao repertório verdade/engano para desqualificar o conhecimento sobre a questão. Alegam não haver consenso científico, acreditando que a visão de pouquíssimos cientistas nada gabaritados possui o mesmo peso que o de toda uma comunidade de especialistas; evocam motivações ideológicas para o que caracterizam como “climatismo”; veem a interpretação dos dados sobre a crise climática como “manipulação”.
Tudo isso independe de estarmos nos referindo aos profissionais da negação ou aos negacionistas incidentais, já que, ainda que os primeiros possam estar agindo pura e simplesmente de má-fé, eles só podem ter sucesso se explorarem a imagem de uma ciência desinteressada que deve ser protegida das deturpações decorrentes da ignorância e de interesses mesquinhos. Em outras palavras, é a obsessão com uma suposta pureza da prática científica que serviria de escudo contra o engano, a crença ou a opinião que o negacionismo explora, contra a própria ciência. Isso quer dizer que, no que diz respeito à imagem que fazemos da prática científica, é possível que tenhamos mais em comum com os negacionistas do que gostaríamos de acreditar…
Mas se não o engano, com toda a ambiguidade que a palavra carrega, o que explicaria o negacionismo? Comecemos a análise pelo primeiro polo do gradiente, ocupado pelos negacionistas profissionais. No livro Onde aterrar?, Bruno Latour sugere que as elites políticas e econômicas que financiam a negação do aquecimento global entenderam muito bem que o colapso climático é real, mas optaram por uma estratégia duplamente criminosa: por um lado, se lançaram em projetos para explorar tudo o que podem de forma ainda mais intensa; por outro, tratam de negar obstinadamente o conhecimento científico sobre o fenômeno. Ao fazê-lo, conseguem acumular lucros que lhes garantirão uma série de privilégios enquanto suas vidas durarem; os outros (o restante de nós) que descubram como sobreviver numa Terra devastada. O negacionismo climático seria, então, uma das respostas dessas elites à constatação de que não há planeta suficiente para seus projetos de desenvolvimento: as outras respostas seriam a fúria da desregulação, a explosão das desigualdades e o abandono das solidariedades que caracterizam a política dos últimos 40 anos, desde que os cientistas soaram os alertas sobre a catástrofe climática em curso.
Ainda, porém, que aquilo que o próprio Latour chama de “hipótese de ficção política” ressalte a intenção de enganar presente no negacionismo, ele admite que isto não explica tudo. E alega que, desde a eleição de Trump (mas também, acrescento, a de Bolsonaro aqui no Brasil), um “delírio epistemológico” teria se instaurado na cena pública, já que a negação cobra um alto preço: ao operar um jogo de mentira e esquecimento da mentira, ela se mostra extenuante, enlouquecedora. Onde aterrar? foi escrito logo após as eleições de Trump, em 2017, e ainda é cedo para saber se as políticas climáticas anunciadas por Joe Biden serão capazes de frear a loucura negacionista que acomete, sobretudo, o Partido Republicano. Se havia a expectativa de que a saída de Trump provocaria uma “epifania” entre os membros do partido, recentemente o próprio Biden admitiu estar desconcertado com a persistência da lealdade aos princípios e estratégias do ex-presidente.
Nesse sentido, a pista que seguimos daquela curta passagem do livro é a de que, mesmo entre os profissionais da negação, não se pode distinguir bem onde termina o desejo de enganar e onde começa o desejo de enganar-se. É como se aquelas elites fossem vítimas do engano tanto quanto aqueles que tentam enganar; se isso é verdade, então talvez a chave para entender a negação esteja no desejo e não no engano. Mais do que maldade, ignorância, falta de informação ou de conhecimento, o que parece ser o principal motor do negacionismo seria, como sugere o sociólogo Keith Kahn-Harris, o forte desejo de que alguma coisa não seja verdade.
O desejo de negar a realidade não é em si uma aberração, uma patologia, sequer necessariamente maligno: protegemo-nos contra certos sentimentos e encontramos maneiras de não ver com relativa frequência no quotidiano. O que o negacionismo opera, porém, é uma “transformação da prática diária da negação em toda uma nova forma de ver o mundo e – ainda mais importante – numa realização coletiva”. Enquanto “a negação é dissimulada e rotineira, o negacionismo é combativo e inusual. A negação se esconde da verdade, [ao passo que] o negacionismo constrói uma verdade nova e melhor”.
Para Kahn-Harris, a transformação da negação individual em projeto coletivo é uma reação desesperada à “inconveniência” de certas descobertas científicas e consensos morais que emergem no que ele chama de “mundo pós-iluminista”: se a teoria da evolução, o aquecimento global e o genocídio judeu, por exemplo, desautorizam certas convicções ou exigem determinadas atitudes, as pessoas tenderiam a encontrar meios de desqualificar tais fatos para proteger suas visões de mundo, seus hábitos e posições. O negacionismo, desse modo, consistiria numa manobra para enganar a própria negação; pois, se negar é ainda saber em algum nível – e por isso, correr o risco de eventualmente confrontar-se com aquilo que se sabe –, o negacionismo é uma “tentativa sistemática de evitar a confrontação e a aceitação” de verdades indigestas. É preciso, portanto, entender por que nos apegamos tão ferrenhamente a certas convicções. E para isso, a noção nietzschiana de “vontade de verdade” pode ser de grande valia.
Segundo Nietzsche, “a vontade de verdade é […] apenas o ansiar por um mundo do permanente”, e tal aspiração teria sido a motivação principal tanto da filosofia quanto da ciência, sobretudo a partir da época moderna. Para o filósofo, a vontade de verdade evidencia a preocupação de cunho moral que move a busca por conhecimento, já que esta seria orientada pela associação da verdade ao bem e da falsidade (ou engano) ao mal. No entanto tal vontade encobriria um desejo oculto de morte, na medida em que se oporia a tudo aquilo que é próprio da vida: a aparência, o erro, o embuste, a simulação e o cegamento.
Mais que uma celebração frívola do falso, o diagnóstico de Nietzsche aponta para o perigo que reside no desejo de não enganar, nem sequer a si mesmo. Essa ânsia pode acabar fazendo perder de vista a vida mesma, ou o próprio mundo: arriscamos simplificar sua complexidade, negar suas transformações, recusar novas possibilidades de percebê-lo, compreendê-lo, habitá-lo, de sermos afetados por ele. O falso alude, aqui, ao imperativo de conceber a vida como aquilo que se expressa nas mais variadas manifestações (perspectiva que invalida a oposição aparência versus essência), ao mesmo tempo que escapa a qualquer tentativa de totalização. Trata-se da abertura ao imprevisto, à incompletude, à mudança e à criação, mas também de um chamado a considerar como legítimos os interesses, as paixões e as inclinações – afetos mundanos, demasiado mundanos.
Nesse sentido, constatar o moralismo inerente à oposição verdadeiro/falso não serve apenas para questionarmos a intenção daqueles para quem “a verdade é mais importante que qualquer outra coisa”, como certas leituras costumam salientar. Ela serve também para afirmar que nenhum conhecimento pode dar conta de todas as movimentações e possibilidades do mundo. Isso, porém, não deveria conduzir à conclusão relativista – no sentido fraco da palavra, associado ao niilismo – de que não há verdade ou que ela não mais importaria. Mais interessante seria pensar a verdade sob a forma de um pluralismo: não é que não exista a verdade, mas há sempre muitas possíveis verdades ou verdades parciais a serem consideradas em determinada situação. O problema da vontade de verdade, assim, é o da pressuposição de uma verdade única, com validade universal.
A contestação de verdades pretensamente únicas empreendida pelos movimentos feministas, decoloniais e pós-coloniais, pelas mobilizações antirracismo e por direitos indígenas, pelo pós-estruturalismo e sua influência nas diversas áreas do conhecimento, sobretudo a partir dos anos 1970, abriu caminho para o reconhecimento de que há muitos modos legítimos de habitar e perceber o mundo. Contudo os que julgaram que isso bastaria para destronar a concepção universalista da verdade subestimaram o papel da oposição verdade/falsidade como princípio de orientação: quando as grandes narrativas deixaram de oferecer um solo seguro, muitos foram buscar segurança alhures.
Assim, talvez possamos dizer que o negacionismo é a expressão da vontade de verdade num mundo em que “a verdade” não é mais concebível. Se esse for o caso, podemos pensar a “era da pós-verdade” como o fenômeno desencadeado pelo desejo por uma verdade una que surge depois de ela ter dados provas de sua inexistência. Mais que meramente um condenável atavismo a uma crença, o negacionismo expressa o desejo de restituir uma verdade sólida que ofereça orientação num mundo que se transforma cada vez mais rapidamente.
Alguns acontecimentos da história recente fornecem pistas para compreender o que motivou essa dobra na vontade de verdade. O primeiro diz respeito à profunda mutação nas relações entre ciência, governo e indústria ocorrida ao longo do século XX. Como lembra o historiador da ciência Steven Shapin, sobretudo a partir do pós-guerra, a prática científica passou a ser fortemente financiada por aqueles setores e, consequentemente, influenciada por seus interesses. Essa nova configuração da relação entre conhecimento e poder suscitou a desconfiança quanto à alegada neutralidade e ao desinteresse da prática científica, abrindo caminho para que alguns grupos contestassem certos fatos e levando a sociedade a nutrir dúvidas que, antes, eram dirigidas às instituições mais claramente identificadas com o poder. Pensemos, para citar um caso emblemático, no negacionismo financiado pela indústria do cigarro: desde a década de 1950, centenas de cientistas estiveram envolvidos na negação do consenso sobre o potencial carcinogênico do fumo. Se há duas posições opostas apresentando-se como científicas, um dos lados necessariamente está enganado ou enganando; como decidir em qual deles acreditar?
Ainda assim, é importante ressaltar de novo que não é a Ciência como instituição que se encontra hoje sob ataque: é bem extensa a lista de fatos e teorias científicas que gozam de alto grau de aceitação dentro e fora da comunidade científica, e que, por isso, não são objetos de disputa. Como afirma o sociólogo Gil Eyal, o que testemunhamos hoje não é um “ataque à ciência”, mas, sim, “a coexistência contraditória entre uma confiança sem precedentes na ciência e nos especialistas e o aumento da desconfiança, do ceticismo e da rejeição de descobertas científicas, opiniões de especialistas ou mesmo de ramos inteiros de investigação”.
É com um sentido análogo que Kahn-Harris caracteriza o negacionismo como uma “mistura entre dúvida e credulidade corrosivas”. Essa mistura talvez seja a principal marca daquilo que Richard Hofstadter chamou, num célebre ensaio publicado em 1964, de mentalidade paranoica. O historiador associava tal mentalidade ao complotismo, mas podemos estendê-la também ao negacionismo: num diagnóstico em muito similar ao de Nietzsche, ele afirmava que a alta desconfiança demonstrada por seus adeptos é proporcional à expectativa de encontrar respostas que “protejam contra a intrusão profana do mundo político secular”.
De fato, longe de se restringir aos negacionistas e adeptos das teorias da conspiração, o estilo paranoico parece caracterizar em maior ou menor grau o comportamento de cada um de nós, estimulados que vimos sendo por tanto tempo a exercitar o “pensamento crítico” e duvidar de tudo aquilo que se postula como verdade estabelecida. E a paranoia se justifica: em primeiro lugar porque, bem, conspirações realmente existem. Em segundo lugar porque, enquanto as novas relações entre ciência e política tornavam mais difícil discernir os limites entre uma prática e outra, vimos também se consolidar uma corrente da crítica social empenhada em demonstrar que há sempre motivações e forças invisíveis operando por trás dos fatos.
Num artigo seminal publicado em 2004, Bruno Latour afirmava ver nas conspirações de então uma versão popularizada da sociologia crítica: em ambos os casos, o procedimento consistia em desconfiar do que as pessoas dizem, fornecer uma explicação para o que está realmente acontecendo e apontar os “agentes poderosos” que agem implacavelmente nas sombras. A diferença entre “nós”, acadêmicos, e “eles”, os teóricos da conspiração, seria que nós nos preocuparíamos com “causas mais elevadas”, como a sociedade, o capitalismo ou o saber-poder, enquanto eles prefeririam acusar “um bando miserável de pessoas gananciosas com intenções sombrias”.
Depois de tanto se ter reclamado das massas crédulas, agora elas desenvolveram fora da academia – e até emulando à sua maneira os métodos acadêmicos – os próprios repertórios críticos para explicar aos outros a verdade por trás dos pretensos fatos. Por isso, engana-se quem interpreta o negacionismo na chave da ausência de pensamento crítico e falta de apreço aos fatos: o que esse fenômeno evidencia, ao contrário, é o quanto o pensamento crítico e o conhecimento científico são valorizados na sociedade. Quando negacionistas e conspiracionistas rejeitam certo conhecimento científico, o fazem em nome de um ideal de objetividade e neutralidade que associam à ciência genuína, e quando oferecem explicações alternativas, acreditam estar colocando a ciência de volta ao prumo do qual fora desviada.
Desse modo, por mais paradoxal que possa parecer, a alegada crise de confiança na ciência pode ser pensada como um indício de seu “sucesso institucional”: por estar tão emaranhada no tecido social, as pessoas exigem se apropriar ainda mais dela, questionando os circuitos estabelecidos de produção, circulação e uso desse conhecimento; são os direitos epistemológicos exclusivos da ciência que estão sendo agora tão poderosamente contestados. Aliás, a denúncia do establishment parece ser um dos motes do pensamento crítico mais replicados nas teorias negacionistas e complotistas.
A exigência por uma ciência mais mundana, porém, coexiste estranhamente com um ideal de verdade nada mundano – pois universal, imparcial e indisputável – nutrido pela própria epistemologia. Se tal ideal foi crucial para a consolidação da legitimidade científica no passado, hoje ele precisa ser revisto à luz das condições materiais por meio das quais a ciência é praticada e das exigências por democratização decorrentes de seu sucesso institucional. Na falta dessa revisão, vivemos uma verdadeira desorientação, já que não se pode admitir que a prática científica desperte interesse: admiti-lo implicaria aceitar também as disputas, controvérsias e contestações que fatalmente surgem quando passamos do domínio dos fatos para os das controvérsias.
Toda vez que, movidos pelas melhores intenções, respondemos às contestações dos fatos com acusações de obscurantismo, anticientificismo e antidemocratismo, reforçamos a imagem aberrante de ciência que informa o negacionismo: uma ciência ao mesmo tempo horizontal e vertical, a uma só vez produzida no mundo e protegida dele, praticada por todos e por ninguém. O problema da atual crise da verdade não reside, assim, no movimento de duvidar de verdades estabelecidas e lidar com a ciência em sua dimensão mundana; ele consiste, mais propriamente, em fazer aquele movimento esperando encontrar, enfim, a verdade que, valendo de uma vez por todas, pacificará nossas discordâncias.
Como vimos, ao longo dos últimos 50 anos perdemos as grandes narrativas que ofereciam verdades reconfortantes, descobrimos que não há planeta compatível com nossas expectativas de desenvolvimento, e assistimos às elites nos abandonarem à própria sorte. Como aceitar tudo isso sem nos desesperar? Podemos conjecturar que o desejo por uma verdade inequívoca se torna ainda mais violento quando, entre as descobertas científicas desconcertantes, figura a constatação de que o modo de vida industrial moderno provocou, como afirma Latour, a “carência universal de espaço a compartilhar e de terra habitável”, que é a marca da nossa época – e que diversos cientistas propõem chamar de Antropoceno.
É por essa razão que, ainda em Onde aterrar?, o autor se recusa a ver os eleitores de Trump (e, acrescentamos, de Bolsonaro) como idiotas incapazes de discernir fatos sólidos de bobagens conspiratórias e fake news. Se hoje proliferam negacionismos e complotismos, isto se deve, em primeiro lugar, à perda do senso de pertencimento a uma comunidade ampliada: a crise de legitimidade da ciência reflete uma crise maior, de ordem social e política. Isso porque “nenhum conhecimento comprovado […] se sustenta sozinho. Os fatos só ganham corpo quando, para sustentá-los, existe uma cultura comum, instituições nas quais se pode confiar, uma vida pública relativamente decente, uma imprensa confiável na medida do possível”.
Se sua intuição estiver correta, podemos conjecturar que, enquanto se acreditava não haver limites planetários para o crescimento das economias, nada parecia realmente obstar nossos planos. Havia lutas e problemas sociais, mas por mais cruciais que fossem os objetos de disputa, havia horizonte para o desdobramento das ações; podia-se esperar que os percalços seriam contornados num futuro próximo, não existindo a preocupação adicional de a Terra, ela também, ter se tornado um agente político com o qual temos de negociar. Mas é justamente a previsibilidade do futuro e os sonhos de expansão infinita numa Terra estável que são solapados pelo colapso ecológico: de uma só vez, o espaço e o tempo parecem se comprimir, e isto não é sem consequências para os herdeiros da modernidade (à esquerda e à direita), colonizados que somos pela ideia de progresso.
Figuras como Trump e Bolsonaro teriam sido capazes de captar a angústia que paira no ar e mobilizá-la em torno de certas estratégias, discursos e atitudes que vêm transformando profundamente a cena política contemporânea. Alguns autores chegam a afirmar que estamos vivendo uma preocupante transição do negacionismo ao pós-negacionismo: enquanto a estratégia dos profissionais da negação “tradicionais” consistia em simular uma controvérsia científica, o pós-negacionismo consiste em negar fatos sem sequer apresentar explicações convincentes em termos científicos (ou mesmo lógicos). Os exemplos dessa mutação do negacionismo na atual pandemia são inúmeros: vão desde alegações de que o vírus foi criado artificialmente pela China até temores de que a vacina seja um pretexto para instalar microchips na população. É como se a mistura entre credulidade e desconfiança que caracteriza o negacionismo tivesse encontrado na “pós-modernidade” o ambiente adequado para prosperar; mas o pós-negacionismo abandonaria o registro da indecisão e se empenharia em fazer da mentira uma verdade a todo custo.
Podemos, portanto, pensar o negacionismo se não recusando, ao menos colocando em perspectiva a chave ambígua do engano. Ainda que os profissionais da negação – quaisquer que sejam suas categorizações – se empenhem efetivamente em enganar, nem eles escapam do tormento provocado pela negação. Além disso, para entender como tal fenômeno angaria tantos adeptos, talvez seja importante reconsiderar nossas acusações: em vez de antidemocráticos, pode ser que muitos desejem maior participação social; talvez não se posicionem contra a ciência, mas acreditem defendê-la, a partir de uma exacerbação do ideal construído pela própria epistemologia e movidos pelo desejo de reduzir a concentração do poder; em lugar de tratá-los como ignorantes, talvez possamos compreender que, diante de tantos perigos e incertezas, são capturados pela vontade de uma verdade que possa oferecer um solo seguro.
Apesar de todos os esforços das últimas décadas para desuniversalizá-la, desconstruí-la, dessacralizá-la, a verdade segue desempenhando uma função importante para o modo como produzimos comunidade, estabelecemos confiança e julgamos caráter. Nesse sentido, talvez nossa melhor opção não seja desviar os olhos da verdade, mas pensar diante de sua insistência como critério de orientação, investigando o papel que desempenha e avaliando se ela pode ser diferentemente concebida. Se vivemos hoje uma crise da verdade, é porque certa concepção sua, estando no cerne do negacionismo, precisa mais que nunca ser substituída por outra, que nos dê mais condições de compreensão e composição política.
Se, como diz Latour, os fatos científicos não se sustentam sozinhos, a tarefa que se impõe para a ciência é a de aprender a cuidar de suas descobertas tão preciosas: entender que, mais que convencer, é preciso engajar as pessoas em torno dos fatos, mostrar que vale a pena confiar na ciência, se posicionar como aliada da sociedade no enfrentamento das ameaças presentes e futuras. A verdade dos fatos reside, assim, mais na eficácia do engajamento mundano que na correspondência a uma ideia transcendental. Mais do que silenciar as objeções, é preciso acolhê-las e se dispor a compreender o que mobiliza os interesses dos envolvidos. Isso não significa necessariamente acatar qualquer proposição – a preocupação comumente atrelada ao fantasma do relativismo –, mas abrir espaço para composições que a oposição verdade versus engano interdita de saída. Isso é importante também porque denúncias e desqualificações consideradas exageradas podem não só tornar as pessoas refratárias ao que o interlocutor diz, mas também acirrar seu desejo de confirmar a própria visão de mundo, abrindo espaço para mais radicalismo do que havia inicialmente.
Melhor convém pensar a verdade como produzida no mundo, em meio às interações que nos conectam a ele. Por isso, não apenas sua prevalência demanda verificações e adaptações constantes para se suster, como ela se mostra tanto mais crível quanto mais puder facilitar as conexões por meio das quais construímos nosso senso de realidade. Pensar a verdade como atividade criadora de mundo implica, assim, admitir que parte de sua força reside na capacidade de envolver as pessoas nas histórias a contar sobre esse mundo. É por meio dessas histórias que as pessoas se enlaçam a uma verdade. Que não desprezemos o efeito desse engajamento: a verdade demanda uma partilha social para se sustentar, e contar histórias juntos é um dispositivo poderoso de produção de confiança e comunidade.
Se pudermos criar juntos – cientistas e não cientistas – narrativas sobre uma Terra que se transforma profundamente a cada dia, talvez tenhamos mais condições de estabelecer alianças com grupos e indivíduos que, do contrário, seriam atraídos para comunidades negacionistas pela promessa de uma estabilidade tão desejada quanto ilusória. Quem sabe tal atitude os leve a concluir que as histórias contadas por aqueles que se preocupam com o estado atual do planeta são muito mais consistentes que aquelas dos negacionistas, pois dizem respeito a um mundo vivo, dinâmico, no qual as condições favoráveis à vida não estão garantidas de uma vez por todas. Um mundo cuja história é feita de eventos contingentes e conexões inauditas, povoado por incontáveis seres interagindo, se multiplicando, se extinguindo, se tornando meios de vida uns para outros.
Para que a verdade possa efetivamente intervir nas disputas que têm lugar no Antropoceno, é preciso pensá-la como uma prática de cultivo da comunidade e de aprendizagem sobre as conexões que sustentam e fazem existir nossa realidade. A verdade se fabrica por meio do engajamento, da produção recíproca de afetos, da constituição de laços. O desafio colocado pelo Antropoceno, portanto, diz respeito à capacidade de criar alianças e histórias inusitadas e não-consensuais, valendo-nos não da negação, mas da atenção aos meios de construir e manter realidades boas o bastante para nós e para os seres que fazem conosco esta Terra que, apesar de única, está longe de ser unívoca.
Alyne Costa
Doutora em filosofia pela PUC-Rio e pós-doutoranda do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. É professora do quadro complementar do Departamento de Filosofia da PUC-Rio.
Osvaldo Carvalho
Artista, pintor e mestre em poéticas visuais pela USP. Seu trabalho já foi exibido em diversos países e ocupa acervos como o da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Como citar
COSTA, Alyne. Negacionistas são os outros. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 15, p. 64-73, dez. 2021.
Este número da revista teve como editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado.