NOU PAP OBEYI
Texto de Daniel Lima com colaboração de Felipe Teixeira, Raquel Borges e Élida Lima
Diálogos, pintura da série de Sidney Amaral
O único país a ter uma rebelião escrava que tomou o poder ocupou por muito tempo o imaginário de subversão do povo negro na América colonial, apavorando as elites brancas.
Comecemos a história desenhando uma ilha no Caribe, dividida ao meio entre dois países: República Dominicana e Haiti. Haiti: a única nação a realizar uma revolta escrava que tomou o poder. A única sociedade a realizar os ideais da Revolução Francesa de igualdade, fraternidade e liberdade. Haiti: primeira nação independente da América Latina e primeira nação a abolir a escravidão na América. (O Brasil foi o último país a abandonar a exploração da mão de obra escrava).
É entre 1791 e 1804 que decorre o processo de independência haitiana. Os rebeldes lutaram contra as tropas de Napoleão, cujo império estava em plena expansão. Por sua rebeldia e pela ameaça ao regime colonial e escravocrata, o Haiti foi isolado política e economicamente. Até décadas atrás, o país pagava uma dívida com a França por sua independência. Subjugada em seguida ao poder militar norte-americano, a ilha, no “quintal” dos EUA, também foi alvo dos marines inúmeras vezes durante o século XX.
Haiti: um país praticamente excluído do capitalismo financeiro, mas envolvido no jogo geopolítico de controle militar. Países como Estados Unidos, Brasil, França, Canadá e Espanha, através da missão de paz da ONU, ocuparam militarmente o Haiti de 2004 a 2017, visando a “garantir sua estabilidade política” – o que obviamente não sucedeu. O Brasil fez do Haiti seu laboratório de ocupação militar de favelas, utilizando esta “tecnologia de controle” na tomada do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. A semente, lançada no contexto da espetacularização da cidade para a Copa do Mundo da FIFA e dos Jogos Olímpicos, cresceu e se transformou na intervenção militar permanente no estado do Rio de Janeiro.
A colônia de Saint-Domingue era produtora de 40% do açúcar do mundo em 1789. A “pérola das Antilhas” foi a mais importante colônia francesa. Era a mais próspera das colônias no Caribe. Tudo baseado na mão de obra escrava. Na ilha de Saint-Domingue os negros escravizados representavam quase 90% da população.
É nesse contexto que a colônia se rebela de dentro para fora, de baixo para cima. Sob a liderança de Toussaint Louverture, um ex-escravizado autodidata, a rebelião se espalha pela ilha, confiscando todas as fazendas e matando quase todos os brancos colonizadores. Um levante escravo que toma o poder.
Mas não seria tão fácil. Não tão simples. Um longo processo de luta se estabelece, numa sucessão de líderes e de batalhas contra opressores internos e externos. Durante mais de dez anos, entre alianças políticas e sociais, a França permanece como o grande inimigo a ser vencido.
A França viveria em 14 de julho de 1789 a queda da Bastilha, que marcou o início da Revolução Francesa. Em 26 de agosto daquele ano, a Assembleia Constituinte da Revolução publicou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que estipulava que todos os homens eram livres e iguais. Será? Esse princípio seria a base de todas as repúblicas modernas e também sua falácia e hipocrisia. Principalmente no mundo colonizado, em todo o planeta, o direito à cidadania é reservado a uma parcela (mínima, privilegiada e em devir branco) da sociedade.
Em 1792 é proclamada a República Francesa; a cabeça do Rei Luís XVI de França é cortada em 1793; e em 1799, após reviravoltas das diversas facções políticas, Napoleão Bonaparte, então general, dá um golpe e se instaura como líder supremo.
Em 1801, Napoleão envia uma gigantesca frota de navios de guerra ao Haiti, lotados de soldados franceses, para retomar a colônia e restabelecer o sistema de escravidão. Entre um vai e vem de acordos e seduções políticas, os franceses chegam a dominar o Haiti rebelde mas, em 1803, Jean-Jacques Dessalines, ex-escravizado natural da Guiné, vira o jogo e derrota as tropas napoleônicas.
A última batalha da Revolução Haitiana, a Batalha de Vertières, ocorreu em 18 de novembro de 1803, perto de Cap-Haitien. Ela foi travada entre os rebeldes liderados por Jean-Jacques Dessalines e o exército colonial francês sob liderança do Visconde de Rochambeau. Em 1 de janeiro de 1804, na cidade de Gonaïves, Dessalines declarou oficialmente a independência da antiga colônia, renomeando-a “Haiti”, depois do nome indígena Arawak. A perda foi um golpe decisivo para a França e seu império colonial.
O vodu, religião afro-americana, foi fundamental no empoderamento da população haitiana na revolta que tomou o poder. Dutty Boukman, um alto sacerdote do vodu e líder dos escravizados, foi quem deu a largada da revolta, durante uma cerimônia religiosa em Bois Caiman, em 14 de agosto de 1791. Dez dias depois, a revolta já estava disseminada e fortalecida, com os negros tomando toda a Província do Norte.
O vodu permanece até hoje no centro das manifestações políticas. O ritual vodu iniciou em Cité Soleil a manifestação que cancelou as eleições presidenciais em janeiro de 2016. Um ritual de empoderamento, um ritual para uma população “sem medo”. O que pode uma população sem medo?
A França cobrou caro a humilhação imposta a Napoleão Bonaparte, impondo um brutal bloqueio comercial ao Haiti. Cobrou também uma indenização pela independência de 150 milhões de francos-ouro, a partir de uma ordenação real “reforçada por 12 navios de guerra franceses com 150 canhões”, como aponta o escritor e historiador Ben Macintyer. Ele não exagera ao afirmar que o Haiti teve de “pagar pela sua liberdade com o couro e o cabelo” nos 122 anos que se seguiram. “Mesmo com a redução da dívida para 90 milhões de francos, o Haiti nunca se recompôs. Pediu empréstimos a bancos norte-americanos, alemães e franceses a juros exorbitantes”.
Macintyer conta a história de um país que em sua independência já nasceu falido: “Em 1900, cerca de 80% do orçamento do país continuava a ser devorado pelos pagamentos da dívida. A dívida externa só foi liquidada em 1947. Nessa altura, a economia do Haiti encontrava-se irremediavelmente destruída, o território desflorestado, mergulhado na pobreza, política e economicamente instável, presa fácil dos caprichos da natureza e da depredação dos autocratas.” Em 2015, na primeira visita oficial de um chefe de Estado francês ao Haiti, o presidente François Hollande prometeu pagar uma “dívida moral” ao Haiti.
Note-se que o final da dívida do Haiti coincide com o início do período de independência das colônias francesas na África e o pagamento de suas dívidas coloniais à França. Essa espoliação duraria décadas, e segue acontecendo, até os dias de hoje, pela imposição feita a esses países de depositar 85% de sua reserva estrangeira no Banco Central da França, sob controle do ministro francês das Finanças. “É por conta do total controle francês sobre a maioria das finanças da África francofônica que nenhum presidente francês (de de Gaulle a Hollande) necessitou de autorização do parlamento ou liberação de orçamento para realizar qualquer uma das 52 invasões promovidas na África nos últimos 54 anos”, como coloca Mawuna Remarque Koutonin.
Note-se também que o termo América Latina, criado por intelectuais hispano-americanos no século XIX, acabou sendo fortemente utilizado na disputa geopolítica na América pelos franceses, criando um contraponto para a influência dos EUA. Seu ponto central era a aproximação cultural entre a França e as nascentes repúblicas de língua espanhola, a partir de uma união “latina” intercontinental, mas que obviamente teria a França como liderança.
Após a independência do Haiti, o medo das revoltas escravas se espalhou pela América. O “haitianismo” e o medo branco expressavam o pavor das elites coloniais em todos os países da América que se sustentavam pelo regime da escravidão. Temiam que a revolta escrava se espalhasse dentro de suas fronteiras. Temiam que sua massa escravizada se rebelasse e tomasse o poder, assim como ocorrera no Haiti.
Dizia-se que documentos produzidos no Haiti sobre a revolução haviam sido traduzidos do francês para o inglês, o português, o espanhol e o holandês e distribuídos entre os escravos por todo o continente. Temia-se a presença de haitianos que poderiam estar fazendo germinar a revolução em cidades como o Rio de Janeiro.
Os detalhes do medo branco e do haitianismo são contados por Carlos Eugênio Soares e Flávio Gomes, que tecem as muitas conexões desse Atlântico Negro. “Em 1814, após uma sublevação em Itapoã, Salvador — cruelmente reprimida —, comerciantes denunciavam que escravos falavam abertamente de suas revoltas, comentando os acontecimentos do Haiti, e gritavam ‘Liberdade! Viva os negros e seu rei!’, ‘Morte aos brancos e aos mulatos!’. Em 1817, em Recife, diria um capitão-de-fragata: ‘O exemplo da Ilha de São Domingos é tão horroroso e está ainda tão recente que ele só será bastante para aterrar os proprietários deste continente’.”
Alain El Youssef relembra o papel do haitianismo em “catalisar forças sociais dispersas pelo vasto território da América portuguesa, criando ‘uma solução de compromisso com a Metrópole’, que terminaria com a adoção do regime monárquico em 1822. Ideia corroborada pelos especialistas brasileiros em escravidão, que caracterizam o final do período colonial e as primeiras décadas do Império brasileiro como um momento no qual teria prevalecido um ‘grande medo‘ por parte dos senhores de escravos, a todo momento preocupados com a possibilidade de rebeldia de seus cativos”.
O medo branco impregnou as sociedades da América, criando sistemas complexos de controle de suas populações. A massa precisaria ser controlada e privada do conhecimento e da consciência de sua condição. Educação negada. Memórias de história e cultura invisibilizadas. Sua autoimagem pisoteada. Foram, e ainda são, construídos muros visíveis e invisíveis nas cidades, impedindo o trânsito social e geográfico. No capitalismo cognitivo, esses muros passam por construir imagens reiteradamente negativas em relação à negritude.
Atravessando toda a América podemos observar a manutenção dessa estrutura de poder político e econômico reservada a uma elite branca – ou a elites que incorporam os valores do colonizador. Revoltas, manifestações, lutas explodem na busca por outro mundo possível na disputa por riquezas e pela democratização do poder político.
Não deixa de ser marcante que, entre as lutas por independência latino-americanas que pulularam no início do século XIX, o Haiti tenha sido o único país a abolir imediatamente a escravidão. Em um artigo sobre o Haiti e a maldição branca, Eduardo Galeano relembra que, “na realidade, as colônias espanholas que passaram a ser países independentes continuavam tendo escravos, embora algumas também tivessem leis que os proibiam. Bolívar decretou a sua em 1821, mas, na realidade, ela não se deu por inteirada. Trinta anos depois, em 1851, a Colômbia aboliu a escravidão, e a Venezuela, em 1854”.
Até mesmo os heróis da libertação da América têm rabo preso com suas origens brancas. A revolução haitiana foi literalmente punida e invisibilizada. A vitória da verdadeira independência foi transformada em tragédia. “A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental”, conclui Galeano.
O terceiro presidente americano, Thomas Jefferson, “dono” em sua vida de mais de 600 negros escravizados, redator da Declaração de Independência dos EUA em 1776, recusou-se a reconhecer a independência do Haiti. Em acordo com a França e com a Espanha, o Congresso dos EUA criou um embargo, impedindo o comércio com o país. Voltemos a Galeano: “Thomas Jefferson, prócer da liberdade e dono de escravos, advertia que o Haiti dava o mau exemplo, e dizia que se deveria ‘confinar a peste nesta ilha’. Seu país o ouviu. Os Estados Unidos demoraram 60 anos para reconhecer diplomaticamente a mais livre das nações”.
No século XX tem início um período de intervenção militar direta dos EUA contra os haitianos. Em 1915, 330 marines desembarcam em Port-au-Prince para defender os interesses da Sugar Company, empresa norte-americana de produção de açúcar, e ao mesmo tempo garantir o controle em sua área de influência. Galeano bem nos lembra que desse primeiro desembarque resultou uma ocupação de dezenove anos e que “a primeira coisa que fizeram foi ocupar a alfândega e o escritório de arrecadação de impostos. O exército de ocupação reteve o salário do presidente haitiano até que este assinasse a liquidação do Banco da Nação, que se converteu em sucursal do City Bank de Nova York. O presidente e todos os demais negros tinham a entrada proibida nos hotéis, restaurantes e clubes exclusivos do poder estrangeiro. Os ocupantes não se atreveram a restabelecer a escravidão, mas impuseram o trabalho forçado para as obras públicas. E mataram muito. Não foi fácil apagar os fogos da resistência. O chefe guerrilheiro Charlemagne Péralte, pregado em cruz contra uma porta, foi exibido, para escárnio, em praça pública”.
O último contingente dos marines partiu em 15 de agosto de 1934, após uma transferência formal de poder e retorno haitiano do controle alfandegário. Deixaram no país uma Guarda Nacional criada por eles, que serviu para controlar o povo e evitar que uma democracia de fato se estabelecesse na ilha.
O haitianismo teve sua mais expressiva representação no Rio de Janeiro, que era a maior cidade negra fora da África, capital do Império. Como manter a ordem? Como manter o controle da maioria por uma minoria? Uma operação como essa não pode ser feita senão a ferro e fogo, com a mão pesada de violências, castigos, torturas e mortes.
O Rio até hoje carrega as marcas de uma sociedade escravocrata que determinou claramente as regiões, os fluxos e os destinos da sua população negra. Um desses destinos foi criado à revelia das elites. Foi criado subindo os morros, desenhando uma nova geografia para a cidade.
Após a abolição tardia da escravidão em 1888 no Brasil, a população negra, abandonada à sua sorte, sem uma estrutura social e econômica que a acolhesse, migra para as áreas urbanas. Em processo simultâneo, o governo brasileiro estimula a vinda de imigrantes europeus para o país como um esforço para “embranquecer” a nação. Os postos de trabalho do início da industrialização nas cidades passam a ser ocupados pelos imigrantes. Aos negros restam o trabalho informal e a marginalização. Não à toa até hoje o serviço doméstico é uma das maiores categorias de trabalho no Brasil.
Nesse contexto surgem as favelas. O Morro da Providência é a mais antiga favela e responsável pelo nome que identifica todo um processo de moradia e vida precárias. Soldados vindos da Guerra de Canudos, no final do século XIX, apelidaram o Morro da Providência de Favela, planta que abundava no morro em que estes mesmos soldados haviam acampado em Canudos.
As favelas marcaram a cidade do Rio de Janeiro e foram invisibilizadas até poucas décadas atrás. Não constavam nos mapas oficiais, não constavam nos números oficiais. Mas sempre serviram como “depósito” de mão de obra barata para todo o funcionamento da cidade.
Voltando ao Haiti do século XX, vemos a ditadura violenta encabeçada pelo médico sanitarista François Duvalier, apelidado Papa Doc (“papai médico”), eleito em 1957 e autoproclamado “presidente vitalício” em 1964. Em 1971, seu filho, apelidado Baby Doc, assume o poder ditatorial aos 19 anos. As violências desse governo autoritário estão entre as mais sangrentas da América. Os Estados Unidos apoiaram a ditadura de 30 anos dos Duvalier, contra a temida expansão do comunismo no período que se chamou de Guerra Fria.
A ditadura no Haiti marca uma sequência de governos autoritários que foram semeados por toda a América Central e do Sul, com participação direta dos Estados Unidos. Na ilha caribenha a ditadura durou até 1986, quando, após um ano de fortes protestos populares, Baby Doc foi forçado a se exilar na França. Em 1990 surge a esperança de democracia quando eleições livres levam à presidência o padre salesiano Jean-Bertrand Aristide.
Depois de idas e vindas no poder, o presidente Aristide institui algumas rupturas em acordos comerciais com os Estados Unidos. A situação incomoda os norte-americanos e o Haiti adentra um complexo processo político que culmina no sequestro de Aristide, numa madrugada do dia 28 de fevereiro de 2004, por militares norte-americanos, que retiram o presidente democraticamente eleito e o levam para a África – um sequestro político que foi legitimado posteriormente pelas comunidades internacionais, em particular pela ONU.
Após a retirada forçada do presidente Aristide do poder, a ONU determina que haja um processo de estabilização política do Haiti. O Brasil, convidado a ser protagonista nessa missão de estabilização, no comando da Minustah – nome dado à ocupação militar da ONU no Haiti –, atua com o maior contingente militar. As tropas da ONU permanecem por treze anos no país como principal instrumento policial.
Mais uma ocupação militar na história da América. O que é a polícia pacificadora do Rio de Janeiro senão o princípio de uma ocupação militar? O que foram as ocupações das comunas de Medellín senão ocupações militares? E quais são seus objetivos senão o controle da população americana, preta e pobre?
Tecnologias de controle em “combate urbano” são exportadas e compartilhadas entre governos. Nas próprias palavras do embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman, “o Haiti é um laboratório para nós, nas áreas militar e civil, de governo e de sociedade civil”. A Minustah serviu de laboratório para a ocupação militar de favelas no Brasil.
Dos soldados do Exército que ocuparam e fizeram o policiamento do Complexo do Alemão, grande parte passou pela Minustah no Haiti – 700 dos cerca de 2.000 soldados no Rio de Janeiro já apontaram suas armas para os haitianos. Jornalistas, ativistas, pesquisadores e líderes comunitários denunciaram infindáveis violências, arbitrariedades e humilhações das tropas da Minustah contra a população haitiana.
Hoje, militares que lideraram a missão brasileira no Haiti durante os governos do Partido dos Trabalhadores ocupam cada vez mais lugares em ministérios, num Brasil presidido por um capitão expulso do exército. Generais como Augusto Heleno, Santos Cruz e Floriano Peixoto, que comandaram a missão da ONU no Haiti, hoje comandam ministérios em Brasília.
O Haiti vive atualmente uma luta por democracia. A Minustah, ao mesmo tempo que assegura “eleições democráticas”, cria no cerne do processo uma manipulação dos resultados. O Core Group, o grupo de ocupação do qual participam Brasil, Canadá, França, Espanha e Estados Unidos, é acusado de modificar os números da eleição presidencial conforme seus interesses.
Acompanhamos em 2016 um levante popular contra essa manipulação, que já havia determinado as eleições passadas. A pressão resultou no cancelamento das eleições presidenciais. Outro segundo turno foi marcado e novamente a eleição teve como vitorioso o candidato Jovenel Moise, apoiado pelos Estados Unidos e pelo Core Group. Hoje, três anos depois, revemos as imagens de revolta na tentativa de derrubada do presidente.
Em 2010, um terremoto de 7.3 graus na escala Richter atingiu a capital Porto Príncipe e deixou cerca de 200 mil mortos e mais de 1 milhão de desabrigados. O Brasil anunciou um pacote de ajuda na reconstrução do país devastado. Os Estados Unidos temiam a migração em massa de haitianos. De fato, teve início um novo ciclo de migração haitiana, tendo como destino principalmente Brasil e Estados Unidos.
Com a capital em ruínas, desestabilidade econômica e falta de emprego, os haitianos passaram a voltar seus olhares para fora do país em busca de novas oportunidades. Em condições ilegais, auxiliados por coiotes, milhares de haitianos iniciaram o caminho da migração, atravessando quatro países: República Dominicana, Panamá, Equador e Peru, até finalmente entrarem no Brasil pelo estado do Acre.
Em 2012, através da Resolução Normativa número 97 do Conselho Nacional de Imigração, o Brasil passou a conceder visto humanitário aos haitianos em consequência do desastre ambiental. O visto humanitário é uma categoria especial de proteção que permite aos haitianos a permanência no Brasil, autorizando-os a buscar emprego e concedendo a eles os mesmos direitos de qualquer estrangeiro em situação regular. Segundo o Conselho Nacional de Imigração, vivem hoje no Brasil aproximadamente 80 mil haitianos.
No ano de 2016 observou-se um novo fenômeno: os haitianos deram início a uma nova rota migratória, partindo do Brasil. Com a crise econômica, a alta taxa de desemprego e a desvalorização do Real em relação ao Dólar (que torna mais difícil enviar recursos aos parentes no Haiti), os imigrantes haitianos começaram a deixar o Brasil. A solução encontrada é fazer o caminho de volta pelo Acre, mas, desta vez, para tentar entrar nos EUA, ou então migrar para o Chile.
Hoje e sempre o Haiti representa simbolicamente o “quilombo”, a resistência e a luta. O conceito de quilombo urbano precisa ser atualizado, impregnado, preenchido por ações e políticas – o quilombo, como perspectiva de um mundo mais do nosso jeito, como perspectiva de transformação das regras hegemônicas das sociedades em que vivemos. Todo camburão é um navio negreiro e toda periferia pode ser um quilombo urbano.
Em 1805, no artigo 14 da Constituição haitiana, lia-se: “Todos os cidadãos, daqui para frente, serão conhecidos pela denominação genérica de negros”. Uma visionária concepção que nos tempos atuais carrega a possibilidade de unificação da luta fracionada de todos os minorizados – que são constante e sistematicamente excluídos do mundo hegemônico branco e colonizador. Num mundo em que a maioria dos indivíduos são submetidos à precarização da vida, uni-vos. Mulheres, mestiços, negros, nordestinos, periféricos, indígenas, transgêneros, uni-vos. Uni-vos, cabecitas negras! Nou pap obeyi! Não vamos obedecer!
Daniel Lima
Artista visual e mestre em psicologia clínica. Membro fundador da A Revolução não será televisionada, Política do impossível e Frente 3 de fevereiro. Dirige a produtora e editora Invisíveis Produções.
Sidney Amaral
Foi professor e artista plástico falecido em 2017, aos 44 anos. Participou de exposições em museus brasileiros e em Angola, Moçambique e Cabo Verde. Foi o primeiro artista a receber o Prêmio de Criadores Negros instituído na Funarte.
Como citar
LIMA, Daniel. Nou pap obeyi. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 13, p. 36-46, mai. 2019.
Por ordem de aparição: Sem título (capa);Diálogos (fragmento do díptico); Davi e Sem título, guaches sobre papel de Sidney Amaral produzidas em 2015. O conjunto destes trabalhos registra o que o artista entendia ser a “urgência da insurgência” contra o recrudescimento do autoritarismo de Estado que comete sistematicamente violências contra parte da população, notadamente a juventude negra, indígenas e pobres. Muitos destes trabalhos, ainda em fase de preparação, foram interrompidos pela morte prematura do artista em maio de 2017.