O OURO
CANIBAL
Texto de Davi Kopenawa e Bruce Albert
Desenhos de Davi Kopenawa
Em A queda do céu, primeiro livro escrito por um Yanomami (Companhia das Letras, 2015), o xamã Davi Kopenawa elabora, em interlocução com o etnógrafo Bruce Albert, um complexo manifesto cosmopolítico. Neste trecho, selecionado por PISEAGRAMA, ele conta como a epidemia propagada pela ganância leva inevitavelmente à morte de todos – inclusive dos brancos.
As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só Omama conhecia. Ele porém decidiu, no começo, escondê-las sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger. Por isso devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas desde sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra, que é o dorso do antigo céu Hutukara caído no primeiro tempo. O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto, que ela envolve de frescor úmido. São essas as palavras dos nossos espíritos, que os brancos desconhecem. Eles já possuem mercadorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que, fazendo isso, serão tão contaminados quanto nós somos. Estão enganados.
Penso que na verdade não foi Omama que criou esse metal. Encontrou-o no solo e com ele escorou a nova terra que acabara de criar, antes de cobri-la com árvores e espalhar os animais de caça pela floresta. Ao descobri-lo, pensou que os humanos poderiam utilizá-lo para abrir suas roças com menos trabalho. Contudo, por precaução, só deixou a nossos ancestrais alguns fragmentos dele, depois de torná-los inofensivos. Com eles puderam fabricar machadinhas. Omama ocultou sua parte mais dura e maléfica no frescor da terra, debaixo dos rios. Temia que seu irmão Yoasi fizesse mau uso dele. De modo que deu a nossos ancestrais o metal menos nocivo, mas também o menos resistente. Disse a eles: “Tomem esses poucos pedaços para trabalhar em suas roças e não desejem mais! Guardarei o restante, que é perigoso! Ele agora pertencerá aos espíritos!”. Esse outro metal, o de Omama, muito pesado e ardente, é o verdadeiro metal. É o mais sólido, mas também o mais temível. Se Omama não o tivesse ocultado desse modo, Yoasi, sempre desastrado, logo teria revelado sua existência a todos e, desse modo, a floresta já teria sido destruída por completo há muito tempo!
Porém, apesar da prudência de Omama, Yoasi conseguiu assim mesmo fazer chegar a notícia da existência desse metal aos ancestrais dos brancos. Por isso eles acabaram por atravessar as águas para vir à sua procura na terra do Brasil. Não é à toa que os brancos querem hoje escavar o chão de nossa floresta. Eles não sabem, mas as palavras de Yoasi, o criador da morte, estão neles.
Com suas máquinas, os garimpeiros só conseguiram, até agora, sugar pó de ouro do fundo dos rios. Mas esses são apenas os filhos do metal. Os brancos ainda não conhecem o pai do ouro, que está escondido bem mais fundo, no centro das terras altas, onde Omama veio à existência. Sem que nem o saibam, é esse verdadeiro metal de Omama que os garimpeiros querem atingir. Vi-os muitas vezes em sonho destruir a floresta toda à sua procura. Ficam seguindo a pista de seus destroços em todas as direções. Mas é sempre em vão, porque Omama o soterrou no mais fundo da terra e os xapiri ficam desviando a atenção deles. Assim que se aproximam, os espíritos da vertigem mõeri os desorientam e os espíritos tatu-canastra os envolvem numa fumaça impenetrável. Omama enterrou esse metal junto ao ser do caos Xiwãripo. Cercado por espíritos do vendaval Yariporari, está também sob a guarda dos espíritos guerreiros napënapëri dos ancestrais brancos. Se os brancos de hoje conseguirem arrancá-lo com suas bombas e grandes máquinas, do mesmo modo que abriram a estrada em nossa floresta, a terra se rasgará e todos os seus habitantes cairão no mundo de baixo.
Omama escondeu seu metal lá no meio dos morros das terras altas, onde também fez jorrarem os rios. É de lá que surgem os ventos e o frescor da floresta. É de lá que vem sua fertilidade. Quando fazemos dançar a imagem desse pai dos minérios, ela se apresenta a nós como uma montanha de ferro subterrânea, cheia de imensas hastes fincadas em todos os lados. Omama a colocou nas profundezas do solo para manter a terra no lugar e impedir que a ira dos trovões e dos raios a faça tremer e a desloque. Cravou-a lá como nós fazemos com os postes de nossas casas, para que elas não balancem durante as tempestades. Assim, esse ferro está enfiado na terra como as raízes das árvores. Ele a mantém firme como fazem as espinhas com a carne dos peixes e os esqueletos com a de nosso corpo. Torna-a estável e sólida, como nosso pescoço faz nossa cabeça ficar reta. Sem essas raízes de metal, ela começaria a balançar e acabaria desabando sob nossos pés. Isto não acontece em nossa floresta, pois ela está no centro da terra, onde esse metal de Omama está soterrado. No entanto, entre os brancos, em seus confins, onde o solo é mais friável, acontece às vezes de ela tremer e se romper, destruindo cidades.
Meu sogro é um grande xamã. É muito sábio. Foi ele o primeiro a ver a imagem do metal de Omama e a fazê-la descer. Desde então, os demais xamãs de nossa casa também a fazem dançar. No meu caso, foi primeiro em sonho que vi o pai do ouro e dos outros minérios. Aconteceu quando, doente de malária, ardendo em febre e tornado fantasma, minha imagem foi levada pelo espírito da terra, Maxitari, até o mais profundo do mundo subterrâneo. É por essa razão que posso falar disso! A imagem do pai do ouro é gigantesca e impregnada de fumaça de epidemia. Trata-se de um ser maléfico, assustador e feroz, capaz de nos cortar a garganta, de dilacerar nossos pulmões e de secar nosso sangue. Os brancos têm de saber disso e desistir de se apoderar do metal de Omama. Talvez seja o mais belo e o mais sólido que eles possam encontrar para fabricar suas máquinas e mercadorias, mas é perigoso demais para os humanos.Se os brancos começarem a arrancar o metal das profundezas do chão com seus grandes tratores, como espíritos de tatu-canastra, logo só restarão pedras, cascalho e areia. O chão ficará cada vez mais frágil e acabaremos todos caindo para debaixo da terra. É o que vai ocorrer se atingirem o lugar em que mora Xiwãripo, o ser do caos, que, no primeiro tempo, transformou nossos ancestrais em forasteiros. O solo, que não é nada grosso, vai começar a rachar. A chuva não vai mais parar de cair, e as águas vão começar a transbordar de suas rachaduras. Assim, muitos de nós serão lançados à escuridão do mundo subterrâneo e se afogarão nas águas de seu grande rio, Moto uri u. Escavando tanto, os brancos vão acabar até arrancando as raízes do céu, que também são sustentadas pelo metal de Omama. Então ele vai se romper novamente e seremos aniquilados, até o último. Esses pensamentos me atormentam muito. Por isso levo em mim as palavras de Omama para defender nossa floresta. Os brancos não pensam nessas coisas. Se o fizessem, não arrancariam da terra tudo o que podem, sem se preocupar. É para acabar com isso que quero fazer com que eles ouçam as palavras que os xapiri me deram no tempo do sonho.
O ouro, quando ainda é como uma pedra, é um ser vivo. Só morre quando é derretido no fogo, quando seu sangue evapora nas grandes panelas das fábricas dos brancos. Aí, ao morrer, deixa escapar o perigoso calor de seu sopro, que chamamos de oru a wakixi, a fumaça do ouro. Ocorre o mesmo com todos os minérios, quando são queimados. É por isso que a fumaça dos metais, do óleo dos motores, das ferramentas, das panelas e de todos os objetos que os brancos fabricam se misturam e se espalham por suas cidades. Esses vapores, quentes, densos e amarelados como gasolina, colam no cabelo e nas roupas. Entram nos olhos e invadem o peito. É um veneno que suja o corpo dos brancos das cidades, sem que o saibam. Depois, toda essa fumaça maléfica flui para longe e, quando chega até a floresta, rasga nossas gargantas e devora nossos pulmões. Queima-nos com sua febre e nos faz tossir sem trégua, e vai nos enfraquecendo, até nos matar. Antigamente, pensávamos que chegava até nós sem motivo, ao acaso. Mais tarde, porém, nossos espíritos xapiri viajaram até as remotas terras dos brancos. Lá viram todas as suas fábricas e nos trouxeram palavras delas.
Quando essa fumaça densa e pegajosa nos atinge pela primeira vez, é muito perigosa para nossas crianças, nossas mulheres e nossos idosos. Eles têm uma carne que ainda desconhece sua força maléfica e, assim, ela consegue matá-los quase todos de uma vez. Foi o que aconteceu com meus parentes, no passado, com a epidemia de sarampo de Toototobi, que por pouco não matou a mim também! Agora, é a malária dos garimpos, também muito agressiva, que tememos. Assim é. O sopro vital dos habitantes da floresta é frágil diante dessas fumaças de xawara. Leva muito tempo até que nossa carne aprenda a endurecer e a resistir a elas. Mas não é à toa. Nossos antigos jamais tinham respirado esses eflúvios de morte. Seu corpo tinha permanecido frio na floresta das terras altas. Quando essas fumaças surgiram, não tiveram forças para se defender. Todos arderam em febre e logo ficaram como fantasmas. Faleceram rapidamente, em grande número, como peixes na pesca com timbó. Foi assim que os primeiros brancos fizeram desaparecer quase todos os nossos antigos.
Antigamente, nossos avós também detinham coisas de feitiçaria, como folhas oko xi, hayakoari e parapara hi, que usavam para enviar fumaças de epidemia famintas de carne humana sobre seus inimigos. Essas plantas eram temidas e poderiam ter dizimado também os brancos se tivessem queimado no meio de suas cidades! Nossos maiores partiam com essas plantas em expedições secretas de feiticeiros oka e as jogavam no fogo perto das casas que queriam contaminar. Assim que a fumaça caía sobre seus habitantes, eles não demoravam a morrer, um atrás do outro. Essas fumaças de xawara eram mesmo muito temíveis! A da planta oko xi, que pertencia às mulheres velhas, por exemplo, atingia primeiro os homens mais vigorosos, antes de liquidar as moças mais belas. Só escapavam dela alguns velhos e adultos descarnados. Foi o que ouvi contar quando era criança. Os maiores não nos deixaram essas plantas de feitiçaria. Elas se perderam. Não sabemos mais usá-las. Se assim não fosse, eu diria: “É verdade, possuímos plantas ruins que um dia servirão para nos vingar daqueles que nos mataram!”. Mas não temos mais nada disso. Apenas ouvimos falar quando éramos novos. Em compensação, o que conhecemos bem, desde a infância, são as fumaças de epidemia dos brancos, que devoraram todos os nossos parentes!
Outrora, antes da chegada da estrada e dos garimpeiros, foram os brancos dos rios que primeiro fizeram queimar epidemias xawara contra nossos antigos. Por raiva, faziam explodir nos ares ou esquentavam em caixas de metal coisas desconhecidas que logo propagavam uma fumaça de morte. Agora, porém, não é mais assim. Os brancos espalham suas fumaças de epidemia por toda a floresta à toa, sem se dar conta de nada, só arrancando o ouro e os outros minérios da terra. Os vapores que saem desses metais são tão fortes e perigosos que até a fumaça da cremação dos ossos de suas vítimas é envenenada. Assim, as poucas pessoas que sobrevivem a uma epidemia também morrem logo depois de respirar essa fumaça. Mas não somos só nós que sofremos dessa doença do minério. Os brancos também são contaminados e, no fim, ela os come tanto quanto a nós, pois a epidemia xawara, em sua hostilidade, não tem nenhuma preferência! Embora pensem morrer de uma doença comum, não é o caso. São atingidos, como nós, pela fumaça dos minérios e do petróleo escondidos por Omama debaixo da terra e das águas. Fazem-na jorrar por toda parte, ao extrair e manipular essas coisas ruins. Chamam isso de poluição. Mas para nós é sempre fumaça de epidemia xawara. Apesar de sofrerem também, eles não querem desistir. Seu pensamento está todo fechado. Só se importam em cozinhar o metal e o petróleo para fabricar suas mercadorias. Por isso a xawara consegue guerrear sem trégua contra humanos. São esses os dizeres de nossos antigos que, como meu sogro, são grandes xamãs. São as palavras dos xapiri que eles nos transmitem. São elas que eu gostaria que os brancos ouvissem.
O que chamamos de xawara são o sarampo, a gripe, a malária, a tuberculose e todas as doenças de brancos que nos matam para devorar nossa carne. Gente comum só conhece delas os eflúvios que as propagam. Porém nós, xamãs, vemos também nelas a imagem dos espíritos da epidemia, que chamamos de xawarari. Esses seres maléficos se parecem com os brancos, vestidos com roupas, óculos e chapéus, mas estão envoltos numa fumaça densa e têm presas afiadas. Entre eles estão os seres da tosse, thokori, que rasgam as gargantas e os peitos, ou os seres da disenteria, xuukari, que devoram as entranhas, e também os seres do enjoo, tuhrenari, os da magreza, waitarori, e os da fraqueza, hayakorari. Eles não comem caça nem peixe. Só têm fome de gordura humana e sede de nosso sangue, que bebem até secar. Para conseguir chegar até nós, sabem escutar de longe a algazarra que sobe de nossas aldeias. Então se acercam de nossas casas durante a noite e penduram suas redes ao nosso lado sem que possamos vê-los. Aí, antes de começar a nos matar, fazem-nos beber um líquido gordurento que nos deixa fracos e doentes.
Em seguida, buscam entre os nossos filhos os mais bonitos e mais gordinhos: capturam-nos e os prendem em grandes sacos, para levá-los para casa. Às vezes cortam logo a garganta de alguns, enfiam-nos em espetos de ferro e os assam para comer ali mesmo. Então, se nossos xapiri não reagirem imediatamente para livrá-los, morrem. Depois disso, os xawarari atacam os idosos e as mulheres cujo sopro de vida é mais fraco. Começam por degolar um grupo inteiro com seus facões, depois descansam um pouco antes de voltar em busca de novas presas. Vão assim juntando aos poucos grandes quantidades de cadáveres, para moqueá-los como se fossem caça. Só param a matança quando consideram que juntaram carne humana o suficiente para satisfazer sua voracidade.
Esses seres maléficos da epidemia são mesmo ferozes e gulosos! Assim que se apoderam das imagens de suas vítimas, decapitam-nas e despedaçam-nas. Devoram em seguida seus corações e engolem seu sopro de vida. Deixam suas vísceras para os cães de caça que trazem consigo. Chupam a medula de seus ossos e os jogam para esses animais esfomeados, que os roem com estalos ruidosos. É por isso que a epidemia xawara nos faz sentir tanta dor na barriga, nos braços e nas pernas! Depois, os xawarari cozinham os corpos destrinchados de suas presas como um amontoado de macacos-aranha em grandes bacias de metal, borrifando-os com óleo escaldante. É isso que nos faz arder de febre! Uma vez cozidas, guardam essas carnes em grandes caixas de ferro para comer mais tarde. Preparam assim latas de carne humana em grandes quantidades, como os brancos fazem com seus peixes e seus bois. Mais tarde, quando seus víveres começam a acabar, mandam de novo seus empregados caçar as imagens de mais vítimas entre nós. Gritam: “Vão buscar crianças humanas bem gordas para mim! Estou faminto! Comeria uma perna com prazer!”. Então, uma vez saciados, deixam-nos em paz por algum tempo. Eles não têm pressa. Quando voltam a sentir fome, retornam, mais e mais, para devorar nossos filhos, nossas mulheres e nossos idosos, pois nos consideram como sua caça. É desse modo que a epidemia xawara vai nos dizimando aos poucos.
A epidemia xawara prospera onde os brancos fabricam seus objetos e onde os armazenam. Sua fumaça surge deles e das fábricas em que cozem os minérios de que são feitos. É por isso que a doença e a morte golpeiam os habitantes da floresta assim que estes começam a desejar as mercadorias. O fato de acumular com sofreguidão roupas, panelas, facões, espelhos e redes atrai o olhar dos seres da epidemia, que então pensam: “Essa gente gosta de nossas mercadorias? Ficaram nossos amigos? Vamos lhes fazer uma visita!”. Chegam logo seguindo os brancos em suas canoas, aviões e carros, sem que se possa vê-los. Os grandes rios, as estradas e as pistas de pouso são seus caminhos e portas de entrada na floresta. É acompanhando os objetos dos brancos que esses seres acabam vindo se instalar em nossas casas, como convidados invisíveis. Quando um avião carregado voa para nossa floresta, eles seguem atentamente o seu trajeto. Depois, nem bem ele aterrissa, começam a buscar humanos para devorar nos arredores. Contudo, suas vítimas não podem vê-los chegar. Só os xapiri conseguem.
Quando morremos sob efeito da yãkoana, nossos xapiri se deslocam para as alturas, no peito do céu. Seu olhar então contempla a floresta como um avião. Assim, localizam a fumaça de epidemia logo que ela aumenta e vem em nossa direção. Então os espíritos napënapëri, imagens dos ancestrais dos brancos, alertam-nos: “A epidemia xawara está vindo e sua fumaça se avermelha! Está pondo o céu em estado de fantasma e devora todos os humanos ao longo de seu caminho! Devemos rechaçá-la para longe!”. Esses xapiri são também os primeiros a atacá-la, golpeando-a com suas imensas barras de ferro. Só eles conhecem bem a fumaça do metal e são capazes de lhe arrancar as vítimas. Os napënapëri se parecem com os brancos que nos ajudam na defesa da floresta contra os garimpeiros.
Levam com eles muitos outros xapiri no combate contra os seres xawarari da epidemia. Os espíritos marimbondo os espicaçam com suas flechas venenosas, enquanto os espíritos jacaré os golpeiam com seus pesados facões. Os espíritos das abelhas bravas xaki e pari os retalham e os das cobras waroma os perfuram. Os espíritos guerreiros Õeõeri e Aiamori acorrem em grandes números para crivá-los de flechas. Os espíritos tamanduá e tatu-canastra os estraçalham com suas facas afiadas. Os espíritos urubu os despedaçam. As imagens dos seres maléficos da sucuri e do dono do algodão Xinarumari os agarram, para sufocá-los e esfolá-los. Os espíritos das grandes árvores aro kohi e masihanari kohi os esmagam com a ajuda do espírito pedra Maamari. Depois, os espíritos do zangão remoremo moxi, do besouro hõra e do vendaval Yariporari também prendem as cabeleiras de suas fumaças no avião de Omama, para arrastá-las para as lonjuras de onde vieram.
Todos os xapiri mais valentes descem para lutar contra a epidemia xawara e se juntam numa tropa incontável para enfrentá-la. Encaram-na com muita coragem e contra-atacam sem descanso, como verdadeiros soldados, sem nunca recuar. Se tivessem medo, ela não pararia mais de nos devorar, até o último!
Contudo, o mais frequente é a epidemia xawara mostrar-se mais resistente à investida dos xamãs do que os espíritos maléficos da floresta. Quando isso acontece, os esforços dos xapiri para destruí-la são inúteis. Por mais que a enfrentem com todas as suas forças, ela não parece ser afetada por seus golpes. Bem no alto do céu, torna-se por demais agressiva e poderosa. Não tem mais medo de nada. As mãos dos espíritos não conseguem agarrá-la e suas armas não são capazes de atingi-la. Por mais que a façam recuar com suas investidas, ela sempre volta ao ataque, cada vez mais forte e resistente.
Hoje, os seres maléficos xawarari não param de aumentar. Por isso a fumaça de epidemia está tão alto no peito do céu. Mas as orelhas dos brancos não escutam as palavras dos espíritos! Eles só prestam atenção em seu próprio discurso e nunca se dão conta de que é a mesma fumaça de epidemia que envenena e devora suas próprias crianças. Seus grandes homens continuam mandando os genros e os filhos arrancarem da escuridão da terra as coisas maléficas que alastram as doenças de que sofremos todos. Assim, o sopro da fumaça dos minérios queimados se espalha por toda parte. O que os brancos chamam de “o mundo inteiro” fica corrompido pelas fábricas que produzem todas as suas mercadorias, suas máquinas e seus motores. Por mais vastos que sejam a terra e o céu, suas fumaças acabam por se dispersar em todas as direções e todos são atingidos por elas: os humanos, os animais, a floresta. É verdade. Até as árvores ficam doentes. Tornadas fantasmas, perdem as folhas, ficam ressecadas e se quebram sozinhas. Os peixes também morrem pela mesma causa, na água suja dos rios. Com a fumaça dos minérios, do petróleo, das bombas e das coisas atômicas, os brancos vão fazer adoecer a terra e o céu. Então, os ventos e tempestades acabarão entrando também em estado de fantasma. No final, inclusive os xapiri e a imagem de Omama serão atingidos!
É por isso que nós, xamãs, estamos tão atormentados. Quando a epidemia xawara nos ataca, ela cozinha nossa imagem em gasolina e petróleo, dentro de suas panelas de ferro. Isto nos faz virar outros e sonhar o tempo todo. Então vemos as imagens de todos os brancos que estão em busca do metal que tanto cobiçam. Vemos as fumaças das inúmeras tropas de seres maléficos xawarari que os acompanham por toda parte, e os enfrentamos com firmeza com nossos xapiri. Somos habitantes da floresta e não queremos que os nossos morram. Os brancos por acaso pensam que Teosi conseguirá fazer a fumaça de suas fábricas desaparecer do céu? Estão equivocados. Levada pelo vento bem alto, até o seu peito, ela já está começando a sujá-lo e queimá-lo. É verdade, o céu não é tão baixo quanto parece a nossos olhos de fantasma e fica tão doente quanto nós! Se tudo isso continuar, sua imagem vai ser esburacada pelo calor das fumaças de minério. Então derreterá aos poucos, como um saco de plástico jogado na fogueira, e os trovões enfurecidos não pararão mais de vociferar. Isso ainda não está acontecendo porque seus espíritos hutukarari não param de jogar água nele para resfriá-lo. Mas essa doença do céu é o que nós, xamãs, mais tememos. Os xapiri e todos os outros habitantes da floresta também estão muito aflitos, pois se o céu acabar pegando fogo, desabará mais uma vez. Então, seremos todos queimados e, como nossos ancestrais do primeiro tempo, arremessados no mundo debaixo da terra.
São essas as palavras de nossos grandes homens, que se tornaram xamãs muito antes de nós. Foi o que eles viram em sonho e é o que relatam os cantos de seus xapiri. Nós, xamãs, como eu disse, sonhamos com tudo aquilo que queremos conhecer. Quando bebemos o pó de yãkoana, primeiro vemos o pai do ouro e dos minérios no fundo da terra, envolto pelas volutas pegajosas de suas fumaças de epidemia. À noite, tornados fantasmas durante o sono, ainda sonhamos muito tempo com isso, através de nossos xapiri. Foi assim que, tornando-me espírito com meu sogro e os outros velhos xamãs de nossa casa, aprendi a conhecer a epidemia do ouro, que nomeamos oru xawara. Esses grandes homens me ensinaram a pensar longe e foi com eles que a imagem de Omama me permitiu ver todas essas coisas. Se eu tivesse ficado só trabalhando para os brancos, se meu sogro não tivesse me chamado para perto dele, meu pensamento teria ficado curto demais. É por isso que agora quero que os brancos, por sua vez, ouçam essas palavras. Trata-se de coisas das quais nós, xamãs, falamos entre nós muitas vezes. Não queremos que extraiam os minérios que Omama escondeu debaixo da terra, porque não queremos que as fumaças de epidemia xawara se alastrem em nossa floresta. Assim, meu sogro costuma me dizer: “Você deve contar isso aos brancos! Eles têm de saber que, por causa da fumaça maléfica dessas coisas que eles tiram da terra, estamos morrendo todos, um atrás do outro!”. É o que agora estou tentando explicar aos brancos que se dispuserem a me escutar. Com isso, talvez fiquem mais sensatos. Porém, se continuarem seguindo esse mesmo caminho, é verdade, acabaremos todos morrendo. Isso já aconteceu com muitos outros habitantes da floresta nesta terra do Brasil, mas desta vez creio que nem mesmo os brancos vão sobreviver.
Davi Kopenawa
Xamã e líder indígena, porta-voz da causa Yanomami, luta contra a destruição de seu povo e da floresta.
Bruce Albert
Etnólogo francês, participou em 1978 da fundação da ONG Comissão Pró-Yanomami e trabalha com os Yanomami desde então. Traduziu e organizou mais de 100 horas de depoimentos de Davi Kopenawa, e compartilha com ele a autoria de “A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami”, lançado pela Companhia das Letras, com tradução para o português de Beatriz Perrone-Moisés.
Como citar
ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O ouro canibal. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 8, p. 32-41, set. 2015.
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