PELO ESCAPAMENTO
Roberto Andrés
Em setembro de 2008, enquanto o mundo rico assistia à falência de suas instituições financeiras e ao alastramento de uma crise econômica de proporções desconhecidas, no Brasil o então presidente Lula afirmava que, se o tsunami da crise aqui chegasse, não passaria de uma marolinha. Em outro pronunciamento, o ex-presidente culpou os “brancos de olhos azuis” pela crise e reafirmou que ela não atingiria os países emergentes.
Mas o ex-presidente pôs as barbas de molho. É senso comum no meio político que a sensação de bem-estar deriva das possibilidades de consumo e acesso a bens e reflete na avaliação do governo e nas urnas. Já em dezembro, o Ministério da Fazenda anunciava as primeiras medidas anticrise, de estímulo ao consumo, à construção civil e ao crédito.
No centro da política anunciada pelo ministro Guido Mantega estava a redução do IPI, imposto sobre produto industrializado, para eletrodomésticos e automóveis. Para carros populares, o governo zerou o tributo, o chamado IPI Zero. As montadoras deveriam repassar a desoneração para o preço dos carros, a fim de garantir o consumo. O desconto duraria três meses, mas se renovou diversas vezes, garantiu e incrementou a venda de veículos no Brasil nos últimos quatro anos.
De 2000 a 2008, a frota de automóveis no Brasil cresceu quase 50% – um aumento de 10 milhões em nove anos. As grandes e médias cidades se encheram de carros, e problemas como poluição do ar, excesso de ruído e trânsito lento se intensificaram. Em 2008, as principais capitais brasileiras já apresentavam índices de poluição atmosférica muito acima do recomendado pela OMS, a Organização Mundial de Saúde. Com o IPI Zero, de 2009 a 2012 foram emplacados mais de 10 milhões de carros. A frota de motocicletas também foi às alturas. Havia 11 milhões em dezembro de 2008 e chegou a 17 milhões no final de 2012.
Uma motocicleta emite de duas a cinco vezes mais gases poluentes que um carro por passageiro transportado. Um carro, quatro vezes mais que um ônibus. Os bondes elétricos não emitem gases poluentes. No Brasil do século 21, quem mais polui foi quem mais cresceu. Desde 2000, a frota de motocicletas aumentou 500%, a de automóveis e a de ônibus dobraram e a de bondes, que já era ínfima, reduziu-se em cinco vezes e hoje se restringe basicamente a linhas turísticas.
A oposição e a mídia não pouparam críticas às medidas do governo, quando consideraram que elas não seriam suficientes para combater a crise. Porém, poucas vozes foram levantadas, à esquerda ou à direita, contra os danos sociais, urbanos, ambientais e à saúde coletiva, decorrentes do estímulo aos automóveis.
Em uma sociedade articulada em torno de imagens, o ar talvez careça de visibilidade. É possível acompanhar, a olho nu, o trajeto do lixo que entope os aterros sanitários e do esgoto que é jogado nos rios. Mas é mais difícil mapear a fonte e o destino do enxofre, do dióxido de carbono e dos particulados que são emitidos na atmosfera. É preciso um trabalho constante de monitoramento técnico, pesquisa científica e divulgação social para se chegar às origens e às consequências do ar poluído.
Em São Paulo, o médico e professor Paulo Saldiva se tornou referência importante na área. Coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP, Saldiva tem em seu currículo Lattes, além de lista extensa de publicações, bancas, orientações e pesquisas, a informação de que é ciclista e gaitista. Frequentemente, em entrevistas e palestras, traduz as equações complexas da pesquisa acadêmica em informações compreensíveis para pessoas como eu e você. E aí o problema fica visível.
Hoje a poluição do ar tira mais vidas em São Paulo do que o cigarro ou a Aids e a Tuberculose somadas, e gera um custo de cerca de R$ 600 milhões por ano em tratamentos de saúde. Inalar o ar da capital paulista por um dia equivale a fumar dois cigarros. Nos corredores de tráfego intenso, esse número pode triplicar. Se o cigarro, exceto em espaços fechados de acesso coletivo, afeta pouco aos não fumantes, a poluição do ar afeta a todos, compulsoriamente. De modo que os mais vulneráveis a problemas respiratórios ou cardíacos pagam o pato. Em São Paulo, são 4.000 mortes por ano graças à poluição do ar. No mundo, segundo a OMS, são 1,3 milhão.
Paulo Saldiva costuma falar em “racismo ambiental”, referindo-se ao fato de que a poluição do ar afeta mais aos mais pobres, em escala global e local. Os países mais pobres têm regras mais frouxas para a emissão de poluentes – um veículo vendido no Brasil polui até 90% mais que um equivalente vendido na Europa. Nas cidades, os que se locomovem a pé ou de ônibus e os que passam muitas horas no trânsito são os que mais respiram ar poluído.
Habitualmente, associa-se emissão de poluentes à chaminé da fábrica, mas a indústria se tornou hoje um poluidor menor. Em parte, porque filtros e processos de combustão foram aprimorados e regulamentados, mas, principalmente, porque os automóveis tomaram a dianteira. Nos centros urbanos, o escapamento dos veículos chega a emitir 90% da poluição presente no ar.
Isso ocorre a despeito da renovação. Veículos novos poluem menos do que os antigos, mas o crescimento da frota e a lentidão que ela provoca no trânsito contrabalançam a melhora de performance. A poluição aumenta consideravelmente com a lentidão do trânsito, uma vez que os veículos passam mais tempo ligados. E o trânsito é causado sobretudo pelos automóveis. (Um infográfico publicado na Folha de São Paulo mostra que, no horário de pico em São Paulo, os carros ocupam cerca de 78% do espaço das ruas, mas transportam menos de 30% dos passageiros. Os ônibus ocupam cerca de 6% do espaço e transportam mais de 50% dos passageiros.)
Investir na melhora do ar passa, portanto, por melhorar o trânsito. Investir em transporte público e em energia menos poluente, taxar e desencorajar o transporte individual. Paulo Saldiva calcula que, no estágio atual das grandes cidades brasileiras, cada real investido contra a poluição do ar significaria uma economia de R$ 7 a R$ 8 reais em tratamentos de saúde. Se o ar em São Paulo melhorasse para os níveis de Recife, a expectativa de vida de seus moradores aumentaria em cerca de um ano e meio.
Na divisão de gavetas dos assuntos ministeriais, a poluição do ar pertence ao Ministério do Meio Ambiente, e não ao da Saúde. A divisão entre os dois ministérios é curiosa. O do Meio Ambiente parece não incluir os seres humanos e o da Saúde, o ecossistema no qual estamos inseridos. De modo que poluição do ar não é, hoje, tratada como problema de saúde pública.
As questões de saúde pública recebem, além de programas de tratamento, atenção das campanhas publicitárias de utilidade pública do Ministério da Saúde. As campanhas abordam doenças e epidemias, divulgam programas de prevenção, vacinação e atendimento social e estimulam comportamentos como doação de leite, de sangue e de órgãos. Há algumas inusitadas, como o Dia Mundial de Lavar as Mãos e a Semana do Peixe.
Nas campanhas, o arsenal de estratégias da publicidade contemporânea é plenamente aplicado. Atores de diferentes tons de pele, tipos de cabelo e idades aparecem sorrindo para promover algum comportamento ou sofrendo com as consequências de alguma doença. O cenário pode ser a praia paradisíaca da propaganda de turismo ou o fundo infinito do marketing institucional. Há jovens que carregam a namorada nas costas, como nas campanhas da Coca-Cola, há despertadores gigantes que combatem mosquitos e não a sonolência, e abundam agentes de saúde com crachás pendurados no bolso do indefectível colete bege.
De janeiro a setembro de 2012, o Ministério da Saúde gastou R$ 115 milhões em campanhas, contratando agências de publicidade, jornais, revistas, mídia indoor e outdoor, canais de televisão e rádio. Embora PISEAGRAMA não tenha recebido um só centavo desse respeitável montante, lançamos aqui a próxima campanha contra a epidemia que assola nosso país. Afinal, viver bem é viver com saúde. E sempre é hora de combater o carro.
Roberto Andrés
Um dos fundadores da PISEAGRAMA, foi editor da revista de 2010 a 2020.
Como citar
ANDRÉS, Roberto. Pelo escapamento. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 5, p. 52-53, jan. 2013.