TRAMAS
DO CRACK
Texto de Taniele Rui
Embarque nessa promoção, pinturas de Desali
Os noias, identificados por seus corpos abjetos, evocam e questionam limites corporais, sociais, espaciais, simbólicos e morais, impulsionando a criação de políticas que visam tanto a sua recuperação quanto a sua eliminação.
Este artigo, organizado pela PISEAGRAMA a partir do extenso trabalho etnográfico realizado pela autora até 2012 e publicado em 2014 no livro Nas tramas do crack, oferece uma imersão na cracolândia de São Paulo, a mais conhecida do país, cujos conflitos replicaram o termo para as tantas que se multiplicam em diversas cidades.
Ali, o programa De Braços Abertos e a repressão pesada marcaram as gestões municipais e estaduais dos últimos anos, evidenciando o conflito político que surge nos extremos da gestão territorial do crack.
Semelhante aos locais de grande afluxo, a cracolândia atrai e concentra uma ampla diversidade de usuários de crack, atestada num simples golpe de vista. Assim que se chega às ruas do entorno, a leitura corporal da multidão é procedimento que antecede a reflexão. Veem-se aqueles que passam apenas para comprar a droga, que é vendida explicitamente; aqueles que param rapidamente para consumi-la e logo saem, aqueles que acabaram de chegar, aqueles que parecem estar ali há mais tempo, os que se mostram mais à vontade, os que andam desconfortavelmente.
Alguns riem, outros estão preocupados, a grande parte parece só olhar. Notam-se os que passam de bicicleta, os que estão parados em pé, os que estão sentados, os acocorados e os que, cansados, deitam-se nas calçadas. Esses ainda se diferenciam entre os que se deitam em colchões, os que se deitam em papelões e os que se assentam diretamente sobre o chão. Alguns estão sozinhos, outros, agrupados em pequenos conjuntos de três ou quatro pessoas, encostados nos muros e parapeitos das calçadas, próximos às sarjetas, ou mesmo no meio da rua.
Seguindo essa visão imediata, é possível distinguir os que estão mais sujos dos que estão mais limpos; os que calçam sapatos ou chinelos dos que estão descalços; alguns com roupas rasgadas, outros com vestimentas em bom estado e os enrolados em cobertores. Bonés, agasalhos, óculos escuros são adornos que se destacam. Uns comem alimentos doados, outros fumam crack, alguns pedem cigarros. Montam cachimbos, pedem-nos emprestados, arrumam piteiras.
Há os que estão acompanhados de seus cachorros e carregando pertences, há os que levam consigo suas carroças de materiais recicláveis, há os que reviram o lixo em busca de algo que possa ser valorado na troca por droga, há os que não têm nada além da roupa do corpo. Na multidão, destacam-se os homens jovens, que possuem entre vinte e quarenta anos. Olhando mais, veem-se os adolescentes, as crianças, os idosos, as mulheres.
Na maior parte das vezes estão falando muito, conversando, revendendo, trocando objetos, contando histórias ou lançando desaforos. Há os que querem falar, mas a voz rouca já não os deixa. Alguém quer droga por um real, outro quer só um trago, um vende sapatos, outro comercia roupa e produtos alimentícios e há aquele que procura alguma lasca da droga que foi esquecida no chão. Um discute sobre a repressão policial, outro pede ajuda dos serviços de assistência. Há o que parece estar adoentado, acuado num canto, com um semblante de dor. Um conta da noite anterior, outro resolve ir atrás de uma pendência. Alguns estão sob o efeito da droga, movimentando demasiadamente a mandíbula. Muitos estão à procura dela, tentando uma negociação. Alguns caminham, indo de um lado a outro da rua. Os corpos se tocam, se entreolham, ora se cumprimentam, ora se provocam. As vozes juntas são barulhentas, falam ao mesmo tempo. Nada, porém, é mais desconcertante do que quando silenciam. Observar mais de duzentas pessoas juntas, caladas, foi uma das piores sensações que experimentei no local.
Por ali, passam também alguns transeuntes, motoristas, muitos catadores de materiais recicláveis, moradores do entorno, garis e fiscais da prefeitura, pais e mães levando crianças para a escola, os diversos policiais e membros das mais distintas igrejas. Não fosse a grande quantidade de lixo nas ruas, o consumo explícito de crack e a aparência maltrapilha de muitos usuários, não haveria ali nada que diferenciasse essa movimentação daquela que se vê nos centros das grandes cidades.
Ao espreitar o que era dito sobre o crack durante anos de pesquisa, fui percebendo que se falava também das nossas noções de zelo corporal, construídas ao longo de um processo histórico e civilizador no qual a própria modernidade foi caracterizada pela entrada do corpo na política, pela sua transformação em mercadoria, pela sua liberação física e sexual, pela grande presença do corpo na publicidade, na moda, no culto da higiene, da dieta, da juventude, dos cuidados e dos prazeres. Ou seja, pelo avesso, tais noções eram constantemente reforçadas.
Nesse processo, a figura do noia tomou uma dimensão não prevista e ganhou centralidade. Pois, ao contrário do que mostra a matéria do jornal que, a partir dessa nomeação, generaliza e homogeneíza a experiência dos usuários, bem como as distintas possibilidades de uso, a pesquisa empírica revela que se trata de uma categoria, a um só tempo, de acusação e de assunção que agrupa abstratamente apenas um segmento muito particular de usuários: aqueles que, por uma série de circunstâncias sociais e individuais, desenvolveram com a substância uma relação extrema e radical, produto e produtora de uma corporalidade em que ganha destaque a abjeção.
Se da perspectiva das interações concretas trata-se de uma categoria bastante plástica, quase inalcançável, é instigante o fato de que tal plasticidade some quando se fala publicamente do uso de crack: imediatamente é essa figura que emerge e justifica todo o aparato repressivo, assistencial, religioso, midiático e sanitário.
O noia, tomado externamente como abjeto, é limite de uma série de relações, produto e produtor de várias e diferentes gestões. Atiça e se submete a disputas terapêuticas, demanda e tolera ingerências do tráfico de drogas, incita e padece de intervenções urbanas, ora repressivas, ora assistenciais. Não é possível pensar em todo esse efeito público e político sem levar em conta o fato de que ele se liga intimamente à rejeição ou à comiseração diante de uma corporalidade específica, que materializa um tipo social, uma pessoa, que, por sua vez, nos obriga a refletir acerca dos limites da experiência humana.
A construção de uma corporalidade ignóbil ocorre gradualmente, por meio da perda de vínculos com as instâncias sociais e familiares que proporcionam as condições de limpeza, asseio e saúde, bem como da consequente exposição às intempéries do clima, à aspereza da rua, aos conflitos corporais, ao uso crescente de drogas e, por fim, à adesão à rua. Como efeito dessas condições define-se uma imagem degradada, repulsiva e amedrontadora. Todavia, mesmo aí há diferenças que são demasiado relevantes: estar mais limpo que os outros, cuidar-se mais que os outros são práticas que marcam distinções nas formas de estar nas ruas, indicam a heterogeneidade presente nesse universo e se refletem em distintas interações com outros atores sociais.
Entre os usuários, o noia é uma figura quase impossível de ser apreendida empiricamente. Figura tão deplorável, é mais um atributo do que propriamente uma materialização: um noia é aquilo que não se deve ser, aquilo que o próprio noia não quer ser, ou, convocando Kristeva, é aquilo que se opõe ao “eu”. Por isso, se ouve com muito maior frequência a acusação de que alguém é noia, do que alguém chamando a si mesmo de noia. É como se sua existência fosse tão ilegítima, tão desconsiderada como “vida”, que não consegue nem se materializar.
Não é assim, definitivamente, que ela é “lida” externamente: noia tem passado a ser termo agregador e rótulo pejorativo dos efeitos imediatos do uso de crack e, também, dos usuários cuja corporalidade abjeta ganha destaque. O efeito visível de tal corporalidade produz sérias consequências a esses mesmos sujeitos: ficam expostos às intervenções de outros, aos esforços disciplinadores, à violência física e à ironia. Ou seja, é tal visibilidade que provoca níveis distintos de gestão e que os impele a ocupar territorialidades igualmente abjetas.
Aquilo que de longe configura uma multidão começa a receber nuances. Gradações vão sendo mais percebidas com a contínua estada no local. Os corpos que se concentram pelas ruas passam a ter nomes de pessoas, as pessoas possuem suas histórias e tudo vai ganhando ainda mais complexidade. Aquele que, por exemplo, ali está parado com roupas rasgadas, magro, sujo e com cabelos engordurados é o Paulo, que morava em Guaianazes, perdeu os pais, deixou o filho com a ex-mulher, os quais não vê há doze anos, quando foi preso pela primeira vez. O Paulo, que é amigo do Jurandir, e que, ao longo da vida, só conseguiu trabalhos precários e mal pagos. O Paulo, que passou os últimos quatros anos de sua vida na cracolândia, que conhece muitos dos que aí estão e que desenvolveu um modo de lá se manter sem incomodar e sem ser muito incomodado. O Paulo, que já viu muita gente chegar e ir embora, mas que também já viu muita gente chegar e ficar.
Ainda que agrupadas em torno do consumo e comércio de crack, é preciso ter claro que as pessoas não estão ali fazendo as mesmas coisas, nem com o mesmo objetivo e menos ainda consumindo a droga com a mesma intensidade.
Eu sigo com muitos outros exemplos, registrados em meus cadernos de campo. Alemão e Rodrigo vieram me dizer que o negócio deles lá era a venda. O primeiro dizia usar crack “desde que o crack existe”, mas insistiu em notar que não era como “os outros”, que não tinha a paranoia de ter que sair andando. O segundo dizia não usar mais nenhuma droga e se autoapresentou como mais um adicto, participante assíduo das reuniões semanais dos Narcóticos Anônimos. Embora ambos tenham dito a mim que são vendedores, é como usuários que se apresentam aos policiais. Sempre com pouca quantidade de drogas em mãos e agindo de forma pulverizada sem uma localização determinada (visando a confundir os policiais), realizam o tipo de tráfico mais comum na região.
Há aqueles que passam, fumam o crack e logo vão embora. Quaisquer poucos minutos no local e é bem possível presenciar cenas como a do rapaz que chegou e foi identificado de longe por outros usuários como playboy: agasalho de tactel preto e camiseta branca, adornados com mochila Adidas e tênis Puma. Limpo, cabelo aprumado com gel. Ele comprou o crack, pipou-o por não mais que dez minutos e saiu.
Ainda para dar conta dessa heterogeneidade de usos e fluxos é preciso considerar os muitos usuários ocasionais de crack que não adentram com facilidade o local, mas que recorrem a ele para comprar a droga. Ficam esperando pelas imediações até que alguém já conhecido busque a porção desejada. Essa pessoa realiza o serviço de mediação em troca de uma comissão em dinheiro ou de uma pedra de crack. Trata-se de um modo de angariar recursos bastante concorrido entre os usuários mais habituados ao local, que disputam entre si essa “clientela”.
Há também aqueles que não vieram de longe, mas que conhecem e frequentam a área desde que eram crianças. Como Mariano, usuário de crack, que morou toda a infância e adolescência (nos anos 1980) num dos cortiços das imediações da Luz, onde brincou com os amigos, onde cresceu e onde experimentou crack pela primeira vez, “ainda quando era feito na panela de pressão”. O centro é o seu bairro. Contou-me que, assim como ele, muitos dos que ali estão são conhecidos de longa data, mas que a maioria, e esta é uma tese bastante comum por ali, vinha dos bairros periféricos da cidade de São Paulo.
A grande parte das histórias envolve fluxos das periferias para o centro, do interior para a capital, das regiões Norte e Nordeste para a Região Sudeste. Históricos que mesclam pobreza, esgarçamento e rompimento dos laços familiares, empregos precários, violências cometidas ou sofridas. Ao enredo se somam histórias de institucionalização, de rua, de prisão, de desavenças – o que, em certa medida, guarda muitas semelhanças com as reflexões sobre o deslocamento dos meninos de rua, dos moradores de rua adultos, dos trabalhadores temporários, dos michês, dos camelôs.
Histórias podem ser acessadas perguntando sobre as cicatrizes no corpo. Joana, por exemplo, tem uma grande “lembrança” na mão. Fizera um programa sexual, o homem recusou-se a pagar por ele, ela insistiu na cobrança e ele foi pra cima dela com uma faca. O alvo era seu rosto, mas ela foi rápida e conseguiu se proteger com a mão. Ouvir um acontecimento como esse abre brechas para depois saber que ela vem se prostituindo, usa crack e está neste entorno há dois anos e meio, desde que saiu da casa da mãe aos 14 anos. Segundo ela, o estopim para sua vinda à rua se deu depois de ter sido violentada sexualmente pelo padrasto. A mãe teria lhe culpado pelo episódio.
Histórias recorrentes. Atentar para elas não significa assumir associações apressadas, já rechaçadas pelas ciências sociais, entre pobreza, criminalidade e uso de drogas. Menos ainda implica desenterrar teses já moribundas acerca da “desestrutura familiar”. Mais salientes, histórias como a de Joana importam porque nos fazem problematizar e adicionar um olhar cuidadoso à própria diversidade. Se, de um lado, para entender o que aí se passa, há sim que apreender as distintas experiências individuais, de outro, há que se investigar aquilo que faz dessa uma experiência social.
A cracolândia pode ser considerada, com todos esses cuidados indicados, o ponto centrífugo mais radical das pobrezas urbanas, assim como o local por excelência da variedade dos usuários e dos usos de crack. Essa variedade, para ser bem apreendida, necessita de pôr, em íntima correlação, as diversidades individuais e as invariantes sociais. Esse é o primeiro ponto.
Mas, além disso, a cracolândia é também um grande “balcão de informações”: ali se descobre quem são os fornecedores de drogas, os melhores modos de tragá-las, as diferenças de qualidade, de preço e de coloração. Por ali se descolam meios de conseguir dinheiro para viabilizar o consumo, bem como se aprende com quais pessoas se pode (ou não) contar. Por essas imediações correm muitas notícias: a troca de tiros na noite anterior, o usuário que teve alguma complicação de saúde, os policiais que são mais truculentos, a usuária que teve de ser encaminhada às pressas a um hospital para dar à luz, a patricinha que acabou de chegar à região, a mãe que está procurando o filho, quem foi preso ou quem acabou de sair da prisão.
Em contato constante com os diversos serviços de atenção e assistência, fica-se sabendo também como tratar algumas doenças bastante comuns por ali; descobre-se como reduzir os danos causados pelo consumo de crack (programas de redução de danos oferecem piteiras de silicone para serem anexadas ao cachimbo e manteigas de cacau para a cicatrização e hidratação de feridas bucais), como resolver pendências na justiça, como refazer documentos perdidos, como receber encaminhamento para albergues. Ali aprende-se também sobre as especificidades de cada serviço e seus horários de funcionamento: aquele que oferece comida, aquele onde é possível tomar banho e fazer uso do vaso sanitário, aquele em que se pode dormir, aquele que entra em contato com comunidades terapêuticas, aquele que auxilia na procura de emprego. E, no local, tem-se ainda acesso aos mais diversos credos e igrejas, podendo inclusive se agenciar a própria “conversão”.
A cracolândia é, também, um lugar de negociação e que favorece empreendimentos, uma “terra de oportunidades”. Trocam-se, com muita facilidade, sapatos, roupas, cigarros, alimentos, achados eletrônicos do lixo de Santa Ifigênia, materiais recicláveis. Uma vez ali e já ciente da rede de fornecedores, é possível comprar uma pedra de crack grande por 10 reais ou 15 reais, fazer lascas dela, que, por sua vez, podem ser revendidas por um mínimo de cinquenta centavos. A grande variedade do tamanho impede que as porções sejam embaladas.
Até mesmo alguns serviços se criam em torno do local: pensões oferecem banho a cinco reais, outras cobram preços módicos de aluguel, outras ainda arrendam o quarto que pode ser usado para o consumo privado da droga e para a feitura de programas sexuais. Algumas lojas passaram a vender materiais que são usados na confecção de cachimbos, os bares aumentaram o estoque de cigarros, de pingas e isqueiros, investiram na diferenciação entre os copos de plástico e os copos de vidro (que variam de acordo com o gosto do freguês) e até um casal de aposentados, que foi depois seguido por uma série de outros microempreendedores, resolveu vender bolos, cafés e sucos no local.
Ali, briga-se com frequência, mas também se festeja. Durante a pesquisa, quando a repressão policial amenizava, era frequente ver a formação de uma roda de pagode. Os usuários se agrupavam numa espécie de círculo, dando início a uma cantoria e, logo, a uma confraternização. Rapidamente peças recolhidas da rua se transformavam em chocalhos ou serviam de superfícies para percussão. O que se via eram pessoas dançando, cantando e consumindo crack ao mesmo tempo. Não era incomum tudo isso acontecer ao lado de grandes montes de entulho.
A sujeira vem de um gradual processo de ausência diária de banho e de cuidados com a higiene, decorrentes tanto da falta de um lugar para fazê-los, da insuficiência de utensílios materiais, do pouco contato com a água, da ausência de estrutura pública que permita práticas de higiene regulares e mesmo de “um grau de desânimo geral que toma conta do cotidiano”. Vem, ainda, do contato rotineiro com lixo urbano, da proximidade corporal com cachorros e gatos de rua, com os ratos que invadem suas habitações provisórias. Vem da conjugação entre o local de excreção e o de alimentação, e, ainda, de dormir direto no chão ou sobre papelões encontrados na rua, enrolados ou não em cobertores. Vem da exposição ao sol, ao frio, ao vento, à chuva, à poluição e ao asfalto duro que tudo arranha. Vem, por fim, da adesão completa à movimentação e à dinâmica das ruas.
Quanto maior o tempo passado continuamente na rua, maior a espessura da sujeira. Nesse processo, os pés vão se tornando ásperos e empoeirados, as unhas ficam pretas, grossas e grandes, os cabelos apresentam-se rançosos, as peles se tornam encardidas, manchadas, opacas e ressecadas, em alguns casos, cheias de espinhas ou feridas, os olhos e os ouvidos apresentam-se com remelas. Quem vivencia no corpo esse processo não fica alheio a ele. Ao contrário, e como venho apontando, com grande frequência os indivíduos assumem que estão “sujos”.
A alteridade é, em boa parte, dada pela sujeira. Ao longo da minha pesquisa, muito do sentimento de vergonha demonstrado por mim e pelos usuários, expresso no silêncio rápido, mas constrangedor, no desviar de olhos, num certo embaraço, estava ligado ao fato de eu estar limpa. Não poucas vezes, quando estendia a mão para cumprimentá-los, ouvia de volta o pedido de desculpas, quase de recusa, por estarem sujas, seguido de uma mão que se juntava à minha de forma bastante tímida.
Somam-se também as doenças de pele, que são recorrentes. Muitas estão ligadas ao contato com as muquiranas, os piolhos, sarnas que grudam e proliferam nos cobertores, nas roupas, nos cabelos e, sobretudo, nas orelhas. Do mesmo modo, vários são os casos de micoses que coçam, criam manchas e chegam a ferir o rosto, os braços, os pés, as barrigas. Frequentemente estão marcados por cicatrizes e por sinais de pancadas, queimaduras, facadas.
E há as marcas específicas do crack. Enquanto especialistas na área biomédica estão absortos em analisar as alterações pulmonares, cognitivas, ou o nível de alumínio sérico no organismo de usuários de crack – preocupações bastante legítimas – estes, nos cenários de uso, são unânimes em ressaltar três “simples” consequências do uso contínuo da droga: dentes e dedos das mãos marcados, lábios machucados e perda de peso. Com menos ênfase, acrescentam uma quarta: a voz rouca. Tais marcas, ao se aliarem a um determinado grau de sujeira, são capazes de criar minúsculas, mas importantes, variações nos modos de engajamento com a droga – o que, por sua vez, resulta em distintas maneiras de se aproximar ou se afastar da condição de noia.
É preciso somar a essas marcas e à sujeira a característica que, sem dúvida, é para os usuários a mais emblemática do alto consumo, e também do autoabandono: a perda de peso, que, gradualmente, produz um corpo demasiadamente emagrecido, que não só envergonha e é apreciado negativamente, como também dói, como me contou Gabriela, que tinha 19 anos e, medindo cerca de 1,60m, já estava pesando 38 kg (ela lembrou que quando era uma “magra normal” pesava 48 kg).
Diferente do que comumente se pensa, o emagrecimento contínuo não é, para os usuários, decorrente do consumo diário de crack e, sim, do tipo de uso que eles apreendem como mais destrutivo: aquele que atiça e retroalimenta o movimento que chamam de hibernação (ou invernação). Trata-se da alternância entre períodos de consumo intenso com períodos de resguardo. Durante o “turno” do consumo, relatam passar de dois a três dias (alguns dizem cinco dias) consumindo a droga ininterruptamente. Não bebem, não comem e não dormem. Usam o crack até o corpo se exaurir.
Enquanto alguns conseguem, durante a exaustão, voltar para os lugares de descanso ou procurar instituições a fim de adormecer, se alimentar e se hidratar, outros acabam se ajeitando nas ruas. Outros ainda desmaiam. Tão esgotados, não é incomum vê-los imóveis, deitados e esparramados por ruas e calçadas, inclusive sob sol forte.
Durante o período de descanso, pude notar várias tentativas de dosar a quantidade consumida. Elas iam desde a parada repentina do uso, à substituição por drogas que eles consideram mais “leves”, como o álcool e a maconha, até à mistura de crack com maconha no cigarro (mesclado). Os que ainda tinham contato amistoso com familiares procuravam voltar para casa durante a noite.
Contudo, o constante movimento de recomposição não dura muito; é só até o desejo de consumir a droga retornar de novo com grande força. É nesse momento que, segundo dizem, a situação se torna mais crítica. Contam que nessa hora de vontade incontrolável, mas sem a droga, “perdem a noção” e fazem de “tudo para consegui-la”. É nesse momento que aparecem narrativas de roubo a parentes, conhecidos, vizinhos, seguidas de eventuais agressões.
Em campo, se vê com frequência os usuários de crack apontando aqueles que conseguem o envolvimento diário, mas não extenuante, e por quem eles devotam certa admiração. De outro lado, não é incomum observar os que são notados se vangloriando pelo controle que possuem e fazendo questão de afirmar corporalmente essa diferença. Apresentam-se bem mais asseados e menos magros. Dizem que não são “como eles”. Representam o controle que outros não conseguem manter. Conversando um pouco mais, se descobre que “o segredo é não deixar a droga te dominar”. Melhor ainda se tiver outra coisa para fazer além daquilo, se tiver, como me disse um, “mulher, trabalho, casa e lazer”.
Se há sempre alguém melhor, há também alguém que se encontra em posição pior. Independentemente de serem conscientes ou não, o ponto é que, com suas práticas, seus corpos e discursos, os usuários de crack vão tentando se posicionar em meio a esses atributos e reinventando a própria existência. Eles não assistem passivamente ao definhamento de seus corpos. Ao contrário, eles fazem isso com os próprios corpos – o que não significa que se trata de um projeto pessoal, tampouco os impede de manifestarem uma abjeção consigo mesmos. Não há nada estranho, pois, no desejo de “fumar uma pedra só”. Este parece ser o consumo desejado: usar a droga moderadamente sem que ela implique uma debilidade corporal.
O passar do tempo vai sedimentando relações e, ainda, é capaz de trazer consigo suas marcações: feriados e acontecimentos da vida nacional e da cidade, datas relevantes para a história pessoal. Todos são ali rememorados.
Tive a sorte de estar com Joyce no momento exato em que ela “descobriu” que fazia aniversário. Sabia que nascera no dia oito de dezembro, mas ainda não havia conectado o dia oito com a quarta-feira, imaginava que “era amanhã”. Várias noites sem dormir utilizando crack dificultam a contagem dos dias, ela me disse. Joyce ficou emocionada, tinha pensado na mãe o dia todo, estava sentindo uma coisa boa; vai ver era por isso, “ela veio me dar os parabéns”, comentou. Falou um pouco a sua história: a mãe morrera por complicações de aids quatro anos atrás, o irmão foi assassinado oito meses depois. Os três filhos que teve estão hoje “num ambiente familiar”. Mas a reflexão durou pouco: começou a andar e a pedir blocos de crack para todos os que passavam, de presente de aniversário. Não presenciei alguém lhe dando o presente que pedia, mas a vi recebendo muitos abraços.
Da mesma forma que o aniversário, aí se vivencia o Natal e o Ano Novo. Fiz trabalho de campo até 22 de dezembro de 2010. Ao longo de todo esse mês muitos começaram a dizer que iam procurar a família, tentar refazer os laços esgarçados, passar as festas juntos, arriscar viver de outro jeito. E, de fato, com o correr das semanas finais fui percebendo que o número de usuários estava diminuindo. Se em parte isso ocorre porque o fim de ano é momento de renovar esperanças, em parte também ocorre porque há o comentário bastante difundido de que esta é uma época de grande repressão policial. Segundo se comenta ali, a polícia pede mais dinheiro aos traficantes para engordar o décimo terceiro salário e as “operações papai-noel” retornam com força, já que, para atrair consumidores às lojas da região central e reforçar a segurança desses, há o esforço da gestão municipal de tirar de visibilidade esta população.
Existem muitas continuidades com o ritmo da cidade e da vida “normal”. A cracolândia não é uma ilha cercada de “centro” por todos os lados. Ao contrário, da mesma forma que nele, diversos usos do espaço são possíveis. Ela é tanto um ponto de confluência dos fluxos de pessoas e de dinheiro quanto um balcão de informações e uma “terra de oportunidades”. Local de conflitos, de festejos e, sobretudo, um grande mercado no interior do qual o crack é vendido, comprado, trocado, negociado e, fundamentalmente, explorado. Tudo isso a um só e mesmo tempo.
Taniele Rui
Doutora em Antropologia social e professora do Departamento de Antropologia da Unicamp. Autora de Nas tramas do crack: etnografia da abjeção [2014].
Desali
Artista visual, participou de diversas exposições no Brasil e no exterior e foi criador da instalação itinerante Piolho Nababo. Possui obra na coleção Arte e Cidade do CCSP. Vive e trabalha em Belo Horizonte, MG.
Como citar
RUI, Taniele. Tramas do crack. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 11, p. 38-45, nov. 2017.
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