VARAIS
Texto e vídeo de Adriana Galuppo
Foram dois anos observando o varal de vizinhos que nunca viria a conhecer. Morava na “Polônia” – apelido que demos ao nosso bairro, no Brooklyn, em NY. O território fora habitado originalmente pelos índios Keshaechqueren, uma subtribo dos Lenape. No século XVII, os primeiros imigrantes europeus começaram a estabelecer suas fazendas na região e algumas ruas ainda levam o nome daquelas primeiras famílias de fazendeiros, como a Meserole e a Calyer. A partir do século XVIII, várias ondas de imigrantes poloneses começaram a chegar na América, principalmente em Chicago e NY (ali, em Greenpoint).
A área residencial de Greenpoint foi sendo mapeada ao longo do século XIX. Havia muitas fábricas de corda na divisa com Williamsburg, bairro irmão que abrigava grandes galpões industriais e que hoje se transformou num dos bairros mais caros de NY – habitado por judeus ortodoxos, latinos, artistas plásticos e músicos de nacionalidades diversas. O McCarren Park (conhecido antigamente por Greenpoint Park) é como um divisor dos dois bairros – simples, gostoso e, quase sempre, vazio.
Cheguei sem conhecer muito bem essa parte do Brooklyn. Uma amiga, que morava num pequeno apartamento no quarto andar de um predinho espremido na Manhattan Avenue, topou me receber por uns tempos. Acabei ficando por lá durante dois anos, morando na sala. Por sorte fiquei com a parte de trás do apartamento. “Minhas janelas” não davam para a avenida e, assim, além de me esconder do barulho, tinha a vista que acabou sendo, por um bom tempo da minha vida, uma das minhas paisagens preferidas.
Fiquei com os quintais de várias casas que se localizavam nas ruas atrás da minha. Na verdade, nunca soube muito bem se aqueles quintais estavam nos fundos ou ao lado. Aquelas casas nunca deixariam de ser um mistério, e, naquela geografia que nunca entendi muito bem, não saber exatamente onde elas estavam fazia com que fossem mais interessantes e inatingíveis.
Numa vizinhança cercada de construções frágeis, em sua maioria de madeira, com alguns quarteirões de casas de pedra ou tijolos, Greenpoint abriga uma maioria de descendentes poloneses – dizem que a segunda maior concentração de poloneses nos Estados Unidos, depois de Chicago. A maior parte deles chegou aqui na virada do século XIX. O trabalho relacionado, na maior parte das vezes, com a vida portuária, também incluía comércio de cerâmica e trabalhos em vidro.
A Slodycze Wedel fica na esquina com a Meserole. Uma casa de doces e bombons deliciosos, tipicamente poloneses – tudo polonês mesmo. As padarias, umas quatro, só na Manhattan Ave., vendem pães artesanais maravilhosos. Aprendi a falar bom dia, obrigada e mais algumas poucas palavras em polonês, o que me ajudou muito na lida com meus novos amigos de bairro. Também me acostumei com as várias garrafas de xixi, em tons variados de amarelo (depende da cerveja ou vodka ou o raio que se bebeu na noite anterior), que eram deixadas nas calçadas de madrugada, e com os lenços, sempre suaves, das senhoras polonesas em contraste com a maquiagem, nada suave, das jovens do bairro. Havia também o acordeom do Peter, um senhor polonês que tocava nas esquinas do bairro por uns trocados, e algumas brigas barulhentas de madrugada, entoadas pelos garotos do xixi.
Ao lado do meu prédio, ficava uma casa lotérica, que também fazia cópias e vendia alguns miúdos. A polonesa que trabalhava lá acabou se tornando uma boa amiga e sempre me atendia com muito alvoroço e alegria. Ganhei no jogo umas três vezes, somando um total de 350 dólares, muito bem gastos. Havia também a mulher dos relógios. Uma senhora que consertava relógios antigos e novos, a um quarteirão da minha casa – com seus óculos pesados e um sorriso largo, intrigante e charmoso. A Photoplay, melhor locadora de filmes que conheci em NY, ficava a uns 3 quarteirões e seu estoque de bons filmes parecia não ter fim. Um YMCA muito bom e barato logo na esquina de baixo, com uma piscina aquecida e uma sala de ginástica, honestas e bem cuidadas.
Mas algo, além dos pães, da mulher das horas e dos jogos, me manteria ali, a despeito da vontade de ter um quarto de verdade, num pequeno estúdio mais próximo dos locais onde estudava e trabalhava: os varais que ficavam no quintal de uma daquelas casas que davam para as minhas janelas. Era uma casa maior, com uma estrutura aparentemente mais forte do que as outras, motivo pelo qual se destacava entre as casinhas e um prédio seminovo que espreitava, deslocado, tudo por ali. As janelas dessa casa e um pequeno deck de madeira, com cadeiras e coisas descoradas largadas lá num tempo qualquer, deixavam tudo mais feliz.
Mas, para mim, o que mais importava eram seus varais. Os varais sempre fizeram parte da cultura italiana e minha família, italiana, não era exceção. No começo da imigração italiana no Brasil, principalmente em São Paulo, muitas famílias que trabalhavam com lavanderias levavam as roupas das famílias ricas para lavar em casa – em especial, no Bixiga e no Bela Vista. Era onde, diziam os imigrantes, os ricos e os pobres se encontravam. Em Belo Horizonte, foi no bairro da Lagoinha que os primeiros imigrantes italianos instalaram seus varais. Lá também havia varais por toda a parte. E eu cresci assim, visitando minhas tias e tios na Lagoinha, cercada por varais e encontros no céu.
Anos depois, numa cidade onde o frio dura cerca de oito meses, as lavanderias pareciam ser a única opção para se secar uma roupinha. Rolava as minhas trouxas pelos quatro andares abaixo em dia de “laundry” e ainda carregava o pacote até a lavanderia mais próxima para finalmente participar de um ritual que, até aquele momento, só tinha visto em filmes. Separar, carregar a máquina, colocar sabão e moedas – esperar o ciclo – mudar de máquina, colocar mais moedas e ver a roupa secando ali por um tempo, voando e saindo quentinha pronta para ser dobrada. Ler, ver TV ou ir adiantando alguma compra ao lado, enquanto tudo acontecia. Tudo muito legal no começo, mas bastante entediante depois. Algumas poucas casas possuem máquinas de lavar e secar e varais são raros de se ver, principalmente no inverno.
Havia um esquema de roldanas que permitia que meus vizinhos puxassem suas roupas de volta e para longe na medida em que iam enchendo ou esvaziando o varal. Era um varal tão alto que jamais daria pé, então tudo era feito através do deck e pelas janelas. Provavelmente eles moravam naquele andar da casa e o andar de baixo era habitado por outra família.
Observei, contente, as primeiras roupas do outono sendo penduradas e, para minha surpresa, no inverno, tudo continuou sendo feito como sempre – roldanas, cordas, roupas, varais… O movimento das roupas era sempre lindo. Às vezes escutava uma música enquanto me deliciava com a imagem e acabava ficando horas olhando para as roupas se mexendo. Via minha vizinha dependurando as roupas e puxando os varais com a mesma disposição da estação anterior. Lençóis, calças jeans, pijamas e muitas camisetas. Por um período bem pequeno durante o ano, havia um pouco de neve e o varal ficava vazio: uma camisola esquecida, uma camiseta no chão – mas, logo, tudo voltava ao normal.
Comecei, com muita discrição, a registrar em vídeo o varal em suas variadas combinações pelas estações afora. Chegava do trabalho ou da escola e filmava o varal daquele dia. No frio, na chuva e no sol, as roupas se movimentando e as pessoas – braços, pernas e pés – se encontrando no céu do bairro polonês. Muitas tardes de sábado e domingo, sentava na janela ou na escada de incêndio e ficava vendo as peças de roupa dançarem sem parar.
Adriana Galuppo
Filósofa e fotógrafa. Estudou fotografia na SVA em NY e é mestranda em Arquitetura e Urbanismo na UFMG. Integra a rede POC, coletivo de apoio a LGBTs, e é surdista no bloco Truck do Desejo.
Como citar
GALUPPO, Adriana. Varais. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 4, p. 48-49, set. 2011.