ILEGAIS
Texto de Rebeca Lerer
Não há registro de sociedade humana que tenha existido sem o uso de algum tipo de psicoativo. Desde o início do século passado, no entanto, a proibição e a criminalização de algumas drogas têm gerado uma crise global que transforma centenas de milhões de usuários em uma multidão de foras da lei.
Além de alimento, o ser humano sempre buscou na natureza substâncias para alterar sua consciência. Plantas, cogumelos e extratos animais com efeitos psicoativos foram experimentados, selecionados e catalogados nos cinco continentes. Com preparos e usos variados, essas substâncias foram incorporadas ao convívio social e tornaram-se moderadores culturais e medicamentos fundamentais em nossa história.
A trajetória da maconha (Cannabis sativa), por exemplo, se confunde com o próprio desenrolar da civilização humana. Planta multiuso cujo efeito psicoativo é apenas uma entre suas várias propriedades, ela consta da farmacopeia do imperador chinês Shen-Nung, que viveu mais de 3 mil anos antes de Cristo. A fibra da maconha – o cânhamo – aparece em tecnologias cruciais ao desenvolvimento das civilizações. O primeiro tipo de papel de que se tem notícia foi produzido com cânhamo. Combustível, cordas, tecidos, forragem, alimento – o cânhamo estava por toda parte, inclusive na matéria-prima da lona das velas das caravelas que chegaram às Américas. Sem a Cannabis, Colombo, Cabral e companhia não teriam virado celebridades enciclopédicas das grandes navegações.
Originária da Ásia, a maconha foi levada ao Oriente Médio pelo povo ariano. Na expansão muçulmana do século VIII, a planta foi introduzida no continente africano, onde se espalhou com as migrações internas. Povos da Ásia Central, como os citas, haviam apresentado a Cannabis à Europa por volta de 500 a.C. No Império Romano, um quilo de maconha custava mais caro do que um quilo de ópio. Já no século XVI, angolanos escravizados pelos portugueses trouxeram a maconha para o Brasil; a erva era colhida na entressafra da cana-de-açúcar. Espanhóis começaram a cultivar cânhamo em suas colônias na América Latina em meados de 1600. No século seguinte, a Cannabis foi levada pela França ao Canadá e pelos britânicos aos EUA e à Austrália. Na Paris da década de 1840, o Clube dos Haxixins, criação do psiquiatra francês Jacques-Joseph Moreau, tornou-se reduto de artistas como os escritores Victor Hugo e Alexandre Dumas e o poeta Charles Baudelaire. Várias obras desses intelectuais citam literalmente o uso de haxixe, indicando a relevância cultural da Cannabis na vida europeia do século XIX.
O relacionamento sério e milenar entre humanos e a Cannabis resultou em uma seleção de variedades com diversos usos e efeitos psicoativos e terapêuticos. Segundo Sidarta Ribeiro, neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e um dos maiores especialistas brasileiros no assunto, “a maconha é uma criação humana, assim como o cachorro. A partir de uma planta primitiva, a humanidade fez um melhoramento: essa maconha é para trabalhar, essa é para estudar, essa é para dor, essa é para extrair fibras e assim por diante. Existem diferentes composições de canabinoides e a planta foi customizada para satisfazer necessidades humanas. Da mesma forma, há 20 mil anos, existiam lobos. Desenvolvemos centenas de raças diferentes de cachorros com habilidades específicas: cães de guarda, guias, lazer, resgate, pastoreio etc.”.
Embora personagem de grande destaque, a maconha não foi a única substância psicoativa que fez história. A Rota das Especiarias, que interligou comercialmente diversos povos durante um milênio e meio, poderia ser descrita como uma grande rede de “tráfico legalizado”: um atacadão transcontinental de produtos de origem vegetal como sementes, raízes, flores, frutos, cascas e caules. Naquele tempo, eram as sacas abarrotadas de cravo, noz-moscada, mostarda, açafrão, canela e pimentas que moviam o mundo. Esse cardápio sensorial com alto valor agregado conquistou consumidores no mundo ocidental e foi definidor para o estabelecimento do domínio europeu pelos mares a partir da Idade Média.
Também há muito a ser compreendido sobre o papel do ópio, substância narcótica obtida das sementes da papoula (Papaver somniferum), nos acontecimentos históricos. O látex extraído das sementes e transformado em resina em pó foi, durante milênios, o principal anestésico usado para controlar as dores da humanidade. Nativo do território hoje conhecido como Turquia, o ópio já era descrito por textos assírios do terceiro milênio a.C. e constava dos trabalhos do médico grego Dioscorides no século I. Da Mesopotâmia e da Grécia, o comércio do ópio se expandiu lentamente em direção ao Oriente, chegando à China no século VII.
Inicialmente, o ópio era consumido cru, na forma de pastilhas ou bebidas. Não constam relatos de problemas severos de dependência nas antigas sociedades asiáticas. O fumo de ópio começou quando os primeiros europeus invadiram a América do Norte e conheceram a prática indígena de fumar folhas de tabaco, passando a misturar o psicoativo com tabaco em seus cachimbos. Essa forma de consumo chegou à China no século XVII e se popularizou rapidamente, levando as autoridades chinesas a proibir o comércio da substância – sem muito sucesso.
No século seguinte, vendedores europeus perceberam a demanda por ópio no mercado chinês e iniciaram um lucrativo escambo em que trocavam a substância por sedas e chás. O governo da China tentou proibir a importação de ópio da Índia, então colônia britânica, batendo de frente com a coroa e provocando a Guerra do Ópio. Com a derrota, os chineses foram obrigados a legalizar a importação em 1858. As tentativas chinesas de proibir o ópio foram retomadas no início do século XX, mas o amplo consumo da substância no país prevaleceu até 1949, quando os comunistas assumiram o poder e erradicaram a prática.
Os efeitos psicoativos do ópio decorrem principalmente do alcaloide morfina, isolado pela primeira vez em 1804. Mais de 90 anos depois, descobriu-se que a mistura da morfina com o ácido anidrido acético produzia um anestésico muito mais potente: a heroína. No Ocidente, com a invenção da seringa hipodérmica, a morfina foi usada para tratar centenas de milhares de soldados feridos durante a Guerra Civil nos EUA, criando uma geração de usuários do medicamento.
Em outro ponto do mapa-múndi, na Cordilheira dos Andes, há milênios os povos ancestrais sul-americanos já mascavam e preparavam chá das folhas de coca (Erythroxylon coca), planta rica em nutrientes e alcaloides, entre eles a cocaína. Quando mascada, a folha de coca causa um leve efeito estimulante e ajuda a controlar fome, sede, dor e cansaço. Para as comunidades andinas, é uma planta medicinal e sagrada. Resíduos de folhas de coca foram identificados junto a múmias no Peru e acredita-se que essas sociedades produziam um anestésico à base de saliva e folhas da planta. Quando os espanhóis invadiram a região no século XVI, inicialmente classificaram o uso nativo da folha de coca de “coisa do diabo”. Após constatarem os efeitos positivos sobre a saúde, legalizaram e taxaram a planta. A descoberta e o isolamento do alcaloide cocaína ocorreriam apenas na segunda metade do século XIX. A cocaína passou a ser vendida nos EUA na forma de pó, cigarros e pastilhas.
A primeira grande contribuição de Sigmund Freud à literatura médica não foi exatamente sobre psicanálise, mas sobre cocaína, com a publicação de Uber Coca, em 1885. No livro, Freud explica que “é unânime a opinião de que a euforia induzida pela coca não é acompanhada de qualquer sensação de lassidão ou outro estado de depressão… Eu mesmo experimentei cerca de uma dúzia de vezes esse efeito da coca, que afasta a fome, o sono e a fadiga e robustece a pessoa para o esforço intelectual”. Freud defendia que a cocaína poderia ser usada para tratar abuso de álcool e morfina.
O uso dessas substâncias era tão amplo e difuso na primeira metade do século XX que foi preponderante inclusive na Alemanha nazista. Pesquisas indicam que Adolf Hitler, suas tropas, trabalhadores de fábricas e até donas de casa – ou seja, todo o 3o Reich – faziam uso de cocaína, morfina e, sobretudo, metanfetamina. O consumo de drogas teve impacto na resiliência dos soldados e nos resultados das batalhas. Para alguns estudiosos do nazismo, considerar a dependência de Hitler dessas substâncias é fundamental para compreender a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial.
Um olhar mais atento aos livros de história mostra que substâncias de uso tradicional, medicinal e psicoativo foram historicamente apropriadas e comercializadas por colonizadores para encher os cofres e alimentar privilégios e baladas da elite intelectual e política de cada época. Mostra também que os psicoativos sempre permearam os círculos de poder, economia, arte, ciência e conhecimento, numa dinâmica evolutiva que atravessa vários milênios.
Quando foi, então, que produzir e consumir substâncias psicoativas deixou de ser uma escolha individual inserida em contextos históricos e culturais e passou a ser um ato de desobediência passível de punição pelo sistema de justiça criminal?
A onda proibicionista começa na virada do século XX com a Convenção do Ópio e ganha força especialmente nos EUA. Em 1914, o Congresso Americano aprovou o Harrison Act, banindo a cocaína e os opiáceos; quatro anos depois, o álcool também foi proibido. Em 1918, os Estados Unidos eram, oficialmente, uma “nação seca”. O fracasso da Lei Seca não apenas produziu figuras como Al Capone, mas criou uma estrutura de repressão que se tornou ociosa quando a proibição de bebidas alcoólicas acabou, em 1933.
Com o álcool novamente submetido à regulação estatal, milhares de funcionários das agências policiais de controle redirecionaram seus recursos para reprimir usuários de outras substâncias. Em 1937, o Marijuana Tax Act tornou a maconha ilegal nos EUA. As décadas seguintes viram novas leis aprovadas com penas maiores para crimes de drogas. Em 1971, em meio à campanha militar norte-americana no Vietnã, o presidente Richard Nixon cunhou o termo “Guerra às Drogas”, declarando o abuso de substâncias ilícitas o “inimigo número 1 dos EUA”.
O pânico moral criado em torno de determinadas substâncias e a influência dos EUA no sistema das Nações Unidas após a 2a Guerra levaram à aprovação da Convenção Única de Narcóticos, em 1961, e da Convenção sobre Drogas Psicotrópicas, em 1972, globalizando as premissas do proibicionismo. O propósito dessas convenções era estabelecer medidas de controle internacional para evitar o comércio ilegal e garantir que substâncias psicoativas fossem disponibilizadas apenas para uso científico e medicinal. Na prática, os tratados da ONU organizaram substâncias controladas em quatro listas, classificando-as de acordo com o potencial terapêutico e o risco de dependência percebidos naquela época. Quase 60 anos de pesquisa científica e avanço tecnológico depois, a mesma tabela classificatória de substâncias continua prevalecendo nos tratados internacionais sobre drogas.
No último século, a retórica de eliminação das drogas condenou à quase extinção as três principais e mais consumidas plantas psicoativas – maconha, papoula e coca –, impediu o acesso a medicamentos tradicionais e rotulou usuários como criminosos. Ao tornar ilícitos produtos seculares consumidos por centenas de milhões de pessoas, a proibição empurrou um mercado que sempre existiu para o colo da clandestinidade. O vácuo de controle criado pelo proibicionismo foi ocupado por organizações paralelas e grupos armados que operam à mercê, porém com a cumplicidade corrupta do Estado e do sistema financeiro. A proibição e as políticas de guerra associadas a ela alimentam um ciclo de homicídios, violência policial, mau uso dos recursos públicos, encarceramentos em massa e violações de direitos humanos.
O genocídio indígena levado a cabo nas Américas visou a eliminar não apenas os corpos, mas a identidade dos povos nativos, fortemente marcada por rituais com psicoativos. O processo de aniquilação ocorrido através da escravização dos povos africanos incluía, de maneira similar, a repressão às suas espiritualidades e a seus rituais de elevação da consciência com plantas de poder. Em nome da Igreja, colonizadores violaram as tradições tribais ao mesmo tempo que apresentaram o álcool como droga sacralizada na liturgia cristã, com impactos devastadores sobre os modos de vida originais.
A violência colonial não foi aleatória – e tampouco terminou com os processos de independência. O passado mais recente mostra que o uso de drogas nas culturas tradicionais seguiu sendo alvo de opressão, tanto pela anulação de identidades quanto pela punição com cárcere e violência. Para os povos tradicionais, resistir foi – e continua sendo – o ato concreto de desobedecer aos poderes hegemônicos. Como desdobramento direto dos legados sangrentos da escravidão do povo africano e do genocídio indígena e na ausência de políticas sistêmicas de reparação, o racismo estrutural sobrevive como um dos pilares centrais da proibição das drogas no século XXI.
No Brasil, mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano. Mais de 70% delas são negras. Existem cerca de 720 mil encarcerados no país, dos quais pelo menos 30% respondem a crimes por drogas. Do total de prisioneiros, 67% são pessoas negras. Tais números apontam para duas conclusões inevitáveis. A primeira é que a política de drogas se tornou uma forma de gestão penal da miséria. A segunda é que a desproporcionalidade explícita no recorte racial dessas estatísticas é um desenho do racismo à brasileira.
A política nacional de Guerra às Drogas consolidou o estereótipo do jovem negro morador de periferia como o “traficante”, ou uma espécie de inimigo interno a ser combatido e derrotado, decretando um estado policial permanente para milhões de pessoas que vivem em favelas e outras áreas pobres das regiões metropolitanas. Nesses territórios historicamente abandonados, famílias sem acesso a moradia, mobilidade, educação, lazer e saúde convivem diariamente com tiroteios e mortes decorrentes de operações policiais com blindados e armamentos de guerra.
Enquanto isso, nas zonas mais ricas das cidades, usuários e varejistas brancos de classes média e alta não sofrem com a mesma intensidade os efeitos da criminalização das drogas. Até mesmo quando um deles acaba preso por tráfico, a imprensa reporta sobre um “jovem que vendia drogas” – abordagem bem distinta da legenda “traficante armado/ crime organizado” que costuma acompanhar a foto de mais um corpo negro morto pela polícia estendido no beco de uma favela ao lado de outra mãe periférica que chora. Para o sistema de justiça criminal brasileiro, negro obedece, senão é preso ou morto. Já brancos podem fumar maconha em Ipanema tranquilamente.
Do ponto de vista farmacológico, define-se como droga a “substância que pode afetar o funcionamento de um organismo”. Analgésicos, chás ou até mesmo o açúcar deveriam ser classificados como drogas. No entanto, esses produtos são conhecidos como medicamentos, bebidas e alimento, respectivamente. A proibição não alterou apenas as leis, mas mudou profundamente a linguagem e, com isto, a percepção social sobre psicoativos. A palavra droga se tornou sinônimo de psicoativos ilícitos, enquanto psicoativos legalizados, como álcool ou tabaco, não são chamados de drogas – embora também o sejam. Essa separação farsesca entre drogas lícitas e ilícitas revela que não existe proibicionismo sem hipocrisia.
Na mesma linha, o uso de drogas é geralmente relacionado a termos pejorativos como criminalidade, incapacidade, imoralidade, doença, vício, falta de caráter e indolência, entre outros. Esse estigma desumaniza o usuário e constitui enorme barreira quando o acesso a serviços de assistência social e saúde se faz necessário. Quanto mais estigmatizados, maior a vulnerabilidade dos usuários ante a violência do Estado ou de civis.
Apesar de todos os recursos financeiros e esforços políticos investidos na repressão e no encarceramento de usuários e trabalhadores do varejo do mercado de drogas ilícitas, o consumo continua aumentando no mundo todo.
Isso também acontece porque as drogas têm importante papel como moderadoras culturais; esta função fica particularmente evidente nas manifestações artísticas, festivas e populares – mas não só. O álcool, droga legalizada e glamourizada através da publicidade, permeia a maioria das confraternizações sociais. A maconha, droga ilícita mais consumida do mundo, também aparece em uma diversidade de tribos e situações de uso. A cocaína está nos escritórios, nos bares e nas baladas, do rock ao samba, do forró ao sertanejo, quase sempre acompanhada de um drink. Substâncias como o MDMA e a Ketamina, por exemplo, prevalecem mais especificamente na cultura noturna de música eletrônica. Já psicodélicos como o LSD e cogumelos são usados com mais frequência em situações diurnas, em espaços abertos e em contato com a natureza. A ayahuasca é utilizada em rituais xamânicos e religiosos. O consumo de lança-perfume e outros inalantes é comum nos bailes funk de várias quebradas – e os próprios fluxos de funk constituem festas orgânicas que desafiam a ordem vigente, assim como foi um dia com o carnaval de rua.
Proibir gera apenas uma ilusão de controle. O controle se dá de forma muito mais efetiva quando há regulação, estabelecendo regras claras para prevenir problemas, gerenciamento de riscos e mitigação de impactos. Indivíduos, embora influenciáveis e suscetíveis a regras, são essencialmente autônomos e desobedientes. Quando a regra imposta por alguma autoridade é especialmente enganosa, como no caso do proibicionismo do uso de drogas, a tendência é transgredir.
Segundo dados da ONU, cerca de 10% das pessoas que usam drogas desenvolvem dependência; os demais 90% se encaixam em outros padrões de consumo. O proibicionismo usa o sofrimento dos 10% para criminalizar e estigmatizar o conjunto dos usuários. Isso explica porque, no desenvolvimento de políticas públicas sobre drogas, a regra é ignorar as vozes de quem faz uso e desconsiderar o conhecimento acumulado sobre efeitos positivos ou adversos. A discussão é dominada por médicos e policiais quando deveria ocorrer majoritariamente no campo dos direitos civis.
Pessoas usam drogas para controlar a dor, aliviar sintomas, melhorar processos emocionais e fisiológicos e fazer a própria gestão do prazer. Em nenhum caso o uso de psicoativos deve ser tido como prática banal, recomendada a qualquer pessoa, a qualquer momento ou em qualquer situação. Trata-se de uma atividade para adultos que envolve riscos e respeito a regras básicas de segurança – assim como dirigir carros ou praticar esportes radicais. Essa deveria ser a premissa central de uma política racional, que respeita a autonomia das pessoas, diferentemente do mito proibicionista de que “todo usuário de drogas se torna um dependente”.
O diagnóstico de dependência só é possível a partir de avaliação individual e do acompanhamento clínico. Segundo a Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde, a dependência é “um agrupamento de sintomas fisiológicos, comportamentais e cognitivos que indica o uso contínuo de uma substância, apesar dos riscos a ela associados”. A possibilidade de um indivíduo desenvolver dependência está relacionada a questões pessoais (psicológicas e genéticas), contexto social (acesso a moradia, saúde, trabalho, educação), circunstâncias de vida (traumas e histórico pessoal/familiar) e características e qualidade da substância utilizada (tipo da droga).
Por tudo isso, é comum que o estigma que afeta dependentes de drogas some-se ao descaso histórico com portadores de transtornos mentais. Durante muito tempo, a sociedade trancou essas pessoas em manicômios, sem práticas de cuidado que respeitassem suas necessidades. Hoje, sabemos que saúde mental é muito mais do que ausência de transtornos. Um ambiente que respeita e protege os direitos civis, políticos, socioeconômicos e culturais é fundamental: sem segurança e liberdade, os traumas são frequentes e comprometem a saúde mental individual e coletiva.
Se milhões de pessoas usam drogas e se os dados científicos comprovam que apenas uma pequena parcela destes usuários desenvolve dependência, por que o senso comum continua aceitando as inverdades do proibicionismo depois de tanto tempo?
A proibição e o estigma funcionam como impedimento ao debate e à educação honesta sobre drogas, tornando usuários reféns de um sistema que propaga ignorância e ameaça a saúde mental. A melhor resposta a esse ciclo perverso é a redução de danos, um conjunto de práticas e políticas de saúde pública e bem-estar social que previne e minimiza eventuais riscos e problemas relacionados ao uso de drogas.
Sem pregar a abstinência como objetivo central, a redução de danos defende o cuidado em liberdade. Atua informando sobre os riscos e qualidades de cada substância, bem como dosagens, misturas entre duas ou mais drogas, a importância do sexo seguro e de não compartilhar insumos para evitar infecções virais, além de oferecer acolhimento e cuidado em momentos críticos. No caso de pessoas em situação de rua que usam drogas, questões como moradia e geração de renda são parte da agenda da redução de danos, assim como o acesso a serviços de saúde e assistência social.
Alguns trabalhadores da redução de danos que atuam em cenas públicas de uso de crack, como na região da Luz, em São Paulo, definem tais áreas como as “mais democráticas da cidade”. Faz sentido. Em meio à miséria e ao sofrimento provocados pela ausência de direitos mínimos, a rua acolhe os diferentes e marginalizados. Na mistura de trajetórias marcadas por estigmas e violações à dignidade humana, nascem possibilidades de convivência e novos vínculos afetivos e territoriais. As histórias dessas pessoas mostram que a origem do problema está na criminalização da pobreza e nos traumas sociais – não no crack ou na cachaça. Nem zumbis, nem noias: os residentes das ‘cracolândias’ são, em sua ampla maioria, indivíduos em busca de conexões e oportunidades.
Em vários países, os movimentos sociais pelo fim da Guerra às Drogas têm crescido e acumulado vitórias. A união de usuários abriu precedentes jurídicos para o funcionamento de clubes canábicos na Espanha. Nos EUA, mais da metade do país já vive em estados com algum nível de acesso legalizado à maconha. Uruguai e Canadá desafiaram as convenções internacionais ao legalizar e regular a erva em nível federal. Recentemente, a Suprema Corte do México deu um passo rumo à legalização da maconha ao julgar inconstitucional a criminalização do uso de drogas no país.
Iniciativas de redução de danos, como salas para uso seguro de crack ou heroína para prevenir overdoses, além de pontos de testagens de sintéticos como MDMA e LSD, se proliferam em cidades norte-americanas, europeias e latino-americanas. Pesquisas com psicodélicos têm apresentado resultados terapêuticos consistentes no tratamento de depressão grave e estresse pós-traumático, tornando-se um campo promissor da neurociência neste início de século XXI.
No Brasil, mesmo em meio ao retrocesso democrático e ao aumento generalizado do autoritarismo, o movimento pelo fim da proibição resiste. Grupos que promovem redução de danos em cenas de uso de crack ou em festas, militantes da rede antimanicomial e alguns setores da Saúde e da Assistência Social têm sido o contraponto de políticas públicas falidas. A Marcha da Maconha São Paulo, que completou dez anos de existência em 2018, levou mais de 100 mil pessoas às ruas da capital paulista no final de maio daquele ano. A multidão era formada por uma maioria de jovens de periferia e organizada em blocos como o feminista, o de luta contra o genocídio da juventude negra e o LGBTQ, entre tantos outros. Com o tradicional #maconhaço rolando do início ao fim do percurso, a Marcha da Maconha se consolidou como um dos maiores movimentos autônomos e interseccionais a praticar desobediência civil coletiva por uma nova política sobre drogas no país.
Usuários, pesquisadores e ativistas que ousam desafiar leis injustas entendem, afinal, que no fim da Guerra está uma chave para o futuro. Legalizar a maconha e as outras drogas é uma agenda civilizatória inescapável para quem almeja a justiça social e a plena realização humana. Algum dia, o estigma sobre os usuários será derrubado. A hipocrisia será derrotada pela ciência. A saúde mental e a garantia de direitos serão finalmente prioridades políticas. Tratamentos modernos e respeitosos serão acessíveis àqueles que desenvolverem dependência. As drogas psicoativas serão reconhecidas por seu papel medicinal e evolutivo. Nenhum ser humano será considerado louco ou ilegal apenas por usar drogas. Até lá, aos usuários, resta continuar desobedecendo.
Rebeca Lerer
Jornalista, militante da Marcha da Maconha, já trabalhou em organizações como Greenpeace, SOS Mata Atlântica, Anistia Internacional e diversos movimentos sociais.
Como citar
LERER, Rebeca. Ilegais. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 13, p. 52-57, mai. 2019.