PRISÃO AUTOGESTIONADA
Texto de Flávio Agostini
Fotografias de Priscila Musa
Como se construiu uma prisão e como ela é mantida, há mais de dez anos, sem torres de vigilância e agentes penitenciários, com pátios arborizados, vistas para as montanhas, hortas comunitárias e com os próprios presos responsáveis pelo controle de quem entra e quem sai.
Quem foram os loucos que fizeram isso aqui? Passados 10 anos, a fatídica pergunta, feita por um perplexo recém-empossado Secretário de Estado na inauguração da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de Santa Luzia, em Minas Gerais, ainda me parece o melhor elogio que um presídio poderia receber.
A perplexidade demonstrada logo na entrada (afinal, prisão não deveria ter praça, prisão tem que ser isolada, escondida) transformava-se em assombro, e até em raiva, à medida que avançávamos em fila pelos espaços do novo edifício.
– Onde estão todas as passarelas com as guaritas de vigilância?
– Elas não existem, Secretário. Nem fariam sentido, já que, aqui, não teremos polícia. Teremos voluntários da comunidade que, junto com os próprios recuperandos e com a administração, farão a segurança do prédio. O projeto não prevê pontos de vigilância, muito menos mecanismos de separação entre internos e administração. Não há nem mesmo refeitórios separados. A segurança será construída a partir da cooperação mútua entre todos.
– Recuperandos?
– Aqui, não falamos em presos, mas em recuperandos. Temos capacidade para 200 pessoas, sendo 120 no regime fechado e 80 no semiaberto. Todos serão chamados pelo nome e não por números. Suas famílias vão fazer parte do cotidiano da prisão. Elas virão aqui. Além das visitas aos domingos, faremos reuniões, palestras, eventos, para que possamos entender como a estrutura familiar, ou melhor, a falta dela, contribuiu para o comportamento de cada um. É importante que o laço familiar não seja rompido, e, sim, intensificado. Eles poderão, inclusive, ligar uma vez por dia para os familiares. Tudo na APAC é feito para que o recuperando, ao sair, encontre uma situação mais favorável em casa, porque, sem isso, ele tem grandes chances de reincidir.
– Mas aqui tem praças demais, pátios demais, não tem como controlar tudo! Prisão tem que ter um pátio só, central!
– Mas a proposta é anti-panóptica, Secretário: criar um espaço que ofereça múltiplas possibilidades de ocupação, onde todos possam se sentir contemplados em diversas atividades simultâneas. Isso não aconteceria se tivéssemos um grande pátio central. É mais difícil de controlar mesmo, por isso todos têm que assumir um compromisso, uma responsabilidade.
Assim seguia o cortejo de inauguração, passando por salas, oficinas, auditórios, travando, a cada parada, diálogos ásperos, substituídos vez ou outra por um silêncio de reprovação. Aquela afronta à arquitetura prisional parecia não ter fim: em algumas praças internas, era possível descortinar a bela vista das montanhas do entorno. Prisão não tem que ter mirante. Os alojamentos eram confusos, cheios de nichos, cantos, prateleiras. Os banheiros, com vasos sanitários comuns, eram fechados até o teto. Preso não tem que ter privacidade.
Ao fim, fomos embora aliviados com o encerramento de um evento constrangedor. O representante do Estado e sua comitiva embarcaram nos carros oficiais certos de que tínhamos cometido um erro grosseiro. Aquilo não poderia dar certo – e rapidamente aquele hotel de malandro seria convertido em uma prisão “de verdade”, equipada com guaritas, passarelas, guardas, sistemas de proteção para a administração. Já entre as dezenas de pessoas envolvidas no projeto, havia a convicção de que tínhamos conseguido um milagre, traçando um acordo político que passou por várias instituições (Ministério da Justiça, PUC-MG, Irmãos Maristas e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dentre outras) para substituir um futuro cadeião por uma unidade da APAC a ser gerida sob concessão do Governo Estadual. Tínhamos conseguido, sobretudo, convencer autoridades federais de que uma nova experiência prisional só seria completa se reinventássemos também a arquitetura. E tratamos de pensar uma arquitetura fraca – aberta, que não controla tão bem, que depende da participação, do envolvimento e da autonomia dos próprios presos.
A história da APAC Santa Luzia, durante os últimos dez anos, resumiu-se na construção de um compromisso coletivo para que a hipótese do Secretário de Estado não prevalecesse. No início, a precariedade da infraestrutura fornecida pelo Estado, que não havia disponibilizado para o complexo nem mesmo um carro, aliada a brigas entre gangues rivais, tornou a vida de recuperandos, administradores e voluntários complicada. Um limite tênue entre precariedade e descontrole se estabeleceu. Em dado momento, faltou comida, elemento fatal para uma rebelião. Os meses de tensão que sucederam à inauguração deixaram uma marca profunda e uma vítima: Renan de Oliveira, um recuperando recém-chegado, envolvido nos conflitos internos, tentou escapar e morreu ao cair do muro do regime fechado.
Mas a precariedade e as enormes dificuldades também acabaram por impor aos próprios internos a urgência de um compromisso. Além de inúmeras conversas, reuniões e palestras, um fato decisivo ocorreu para que o controle do ambiente hostil fosse alcançado: a chegada de presos de outras áreas da região metropolitana de Belo Horizonte. Ao contrário do que é dito por defensores do sistema prisional tradicional, presos mais velhos, mais experientes e com penas mais altas, são fundamentais nas APACs. Eles compreendem melhor a oportunidade oferecida, se empenham em apaziguar ânimos, principalmente entre os mais jovens, e encampam com mais autoridade a ideia de que os presos devem se ajudar. Recuperando ajudando recuperando, um ponto fundamental para uma penitenciária sem policiais.
Passado o trauma inicial, as funções cotidianas também foram sendo gradualmente assumidas pelos internos. Como preconiza o método de gestão das APACs, criou-se um conselho para tomada de decisões, regido pelos próprios recuperandos: o Conselho de Sinceridade e Solidariedade, ou CSS. O conselho funciona como o braço direito da administração. Cabe a ele, tanto no regime fechado como no semiaberto, organizar tudo o que acontece na penitenciária, delegando tarefas aos internos e fiscalizando a sua execução: controle dos horários de cada atividade, controle das portarias de entrada do complexo, realização das revistas nos visitantes, controle da participação de todos em aulas, oficinas e palestras, definição das tarefas de limpeza e manutenção e controle das chaves de todo o prédio, inclusive das celas. Sim, os recuperandos se trancam em suas celas a partir das 22h e, do lado de fora, um deles, o “galeria”, mantém a posse de todas as chaves, zelando pelos demais.
Se fosse apenas um conselho para a gestão coletiva do cotidiano, o CSS já representaria um enorme avanço no atual horizonte prisional do país. Mas ele não se limita a isso. Dentre todas as funções atribuídas ao CSS, talvez a mais complexa seja a de administrar internamente os conflitos entre recuperandos. Cabe ao conselho intervir em momentos de tensão e tentar resolver os problemas com negociações ou mesmo com a aplicação de restrições temporárias (separando, por exemplo, um indivíduo dos demais até que as coisas se acalmem e a conversa possa ser restabelecida). Tudo isso para que não existam confrontos. Os raros casos de agressões entre internos confirmam o saldo positivo alcançado: uma prisão sem policiais que não conhece violência, nem mesmo contra aqueles que costumam ser as vítimas preferenciais nas cadeias. Trata-se de um grande passo, sobretudo se pensarmos que muitos estão ali exatamente por não saberem lidar com conflitos.
Dentro dessa lógica cotidiana, cabe à administração acompanhar as atividades do CSS. A princípio, uma intervenção de cima pra baixo só ocorre em casos específicos, na ocorrência de faltas consideradas graves – como o uso de celulares e a venda e o consumo de drogas – ou de brigas que não puderem ser resolvidas com a mediação do conselho. Esses casos são, no entanto, raros, e não costumam passar de três a quatro ocorrências anuais.
O que se passa em Santa Luzia não foi inventado ali. A experiência das Associações para Proteção e Assistência aos Condenados baseia-se em um método desenvolvido ainda nos anos 70, em São José dos Campos, que hoje abarca mais de 50 unidades prisionais em todo o país, todas sob concessão e fiscalização do Estado. O que todas essas unidades têm em comum, por mais que a maioria não tenha uma configuração espacial experimental como a de Santa Luzia, é a determinação de dar voz aos presos, incentivando-os a protagonizar seu cotidiano. Não se trata, necessariamente, de uma escolha fácil: a autonomia implica em muitas responsabilidades e num estado de negociação permanente.
Cabe perguntar qual pode ser o papel do espaço prisional nisso tudo. Afinal, se são tantas APACs espalhadas pelo país, e se todas funcionam, por que se incomodar com uma nova arquitetura? Pode-se dizer que as APACs existem apesar do espaço. Muitas delas surgiram de antigas cadeias adaptadas, algumas restritas a alguns pavilhões dentro de grandes penitenciárias. Toda a revolução de tratamento penal que elas preconizaram se deu, portanto, no mesmo lugar das outras prisões. A questão a ser discutida então não é a viabilidade da experiência a partir de seus aspectos espaciais, mas seus limites. Nesse sentido, é razoável supor que outro espaço prisional possa permitir ou aprofundar novas abordagens e estimular dinâmicas menos rígidas do cotidiano. O espaço pode funcionar como um catalisador de experiências e de aprendizado.
No caso da APAC Santa Luzia, essas possibilidades surgem a partir de várias estratégias. Em primeiro lugar, foi preciso criar opções, possibilitando a apropriação dos espaços – projetando, por assim dizer, um edifício incompleto. A partir dessa condição, abre-se um processo de tomada de decisões, de discussão, e até de embate, para que usos sejam destinados aos espaços. Esse é um processo fundamental. O grande número de pátios, por exemplo, permitiu não só uma rica relação entre interior e exterior, como também estimulou ocupações diversificadas, todas viabilizadas por iniciativas dos recuperandos. Alguns pátios foram tomados por hortas, outros foram cuidadosamente decorados para receber as visitas, outros, ainda, viraram extensão das oficinas, recebendo, para isso, um novo mobiliário, produzido pelos recuperandos. Algumas áreas foram simplesmente abandonadas, ou mesmo negadas, cedendo lugar a puxados ou estufas. Trata-se de soluções igualmente válidas, em constante mudança, em processo.
É claro que um arranjo espacial mais flexível não resolve tudo. O caráter opressor de qualquer prisão é um obstáculo que dificilmente pode ser transposto em sua totalidade. É possível, no entanto, minimizá-lo. Redefinir a noção de campo visual foi mais uma das estratégias adotadas. Quem já teve a oportunidade de visitar penitenciárias e cadeias mineiras, desenvolvidas a partir da tipologia do pátio central, entende o quão perturbadora é a experiência de estar sempre envolvido por paredes, sem horizonte. Trata-se do desenho, por excelência, do espaço disciplinar, aquele que não oferece tréguas e que não é apenas rígido, mas enlouquecedor.
Em Santa Luzia, a implantação do prédio em diversos níveis escalonados, acompanhando a declividade do terreno, permitiu explorar a vista das montanhas a partir de alguns pátios. Mais do que simples pontos de contemplação, esses espaços proporcionam aos recuperandos uma experiência inversa àquela do emparedamento. É como se estivessem voltados de costas para o prédio, fora dele. Ver as montanhas, perceber o horizonte, implica também estabelecer uma noção menos artificial do tempo, tão comum nas prisões. Entre a sequência de atividades diárias, indo de uma sala a outra, atravessando pátios, é possível ver uma tempestade que se aproxima, o sol se pondo, ou outro momento qualquer, imprevisto, que não se enquadra em nenhum estatuto prisional.
Detalhes podem fazer uma enorme diferença num ambiente como o prisional. A opção por criar janelas, desenvolvidas em Santa Luzia como grandes painéis dobráveis de PVC, abriu mais um campo de interação cotidiana. Ao contrário de prisões tradicionais, em que as celas são mal iluminadas e mal ventiladas por meio de pequenos rasgos no alto das paredes, a janela real, generosa, manuseável, levou também a uma rotina de negociações entre os cinco integrantes de cada cela. Fechar? Abrir para o sol? Deixar o vento entrar? Pequenos dilemas que podem não ser tão simples num ambiente tão extremo.
É curioso pensar que exatamente quando a experiência da APAC amadurece e se espalha, tornando-se uma potencial chance de mudança do cárcere no Brasil, passamos a conviver com uma forte pressão pela privatização do sistema. Relatos de pessoas que estiveram nas novas penitenciárias privadas em Minas, construídas via PPPs, falam de um universo prisional duro, oriundo de um sistema de tratamento penal que vem se construindo desde o século XIX. Ao que tudo indica, prevalece, agora de forma implacável, o seu lado mais perverso: o do cotidiano pensado pela lógica da rebelião – ou melhor, de sua contenção.
Nada de abandono, de multidões jogadas à própria sorte, ou de violência, como lembrariam, por exemplo, as imagens que guardamos do Carandiru. O que temos é a concretização de um ideal de controle absoluto dos corpos – o ideal da segurança máxima – tomado como regra geral. Vale para todos. Presos que não têm nome. Presos que não podem se aproximar de ninguém – a infame “distância de segurança”. Presos que são algemados em filas até para atravessarem o pátio em direção a uma sala de aula. Presos que não podem fazer um café, que não podem usar uma escova de dente normal, que não podem deitar no chão. Presos que são filmados 24 horas por dia e que não podem sair do campo visual das câmeras. Presos que não podem levar para suas celas o caderno com as anotações feitas em sala de aula. Presos que são obrigados a viver em celas coletivas que não contam sequer com uma divisão para os banheiros, apenas um vaso sanitário próximo às camas.
Essa parece ser a descrição de uma penitenciária nas horas seguintes a um motim – um momento de exceção, de extrema necessidade de controle. No entanto, são apenas cenas cotidianas de uma rotina de humilhações, de destruição das individualidades, de sepultamento do sujeito. Enfim, uma versão atualizada do universo disciplinar descortinado por Erving Goffman e Michel Foucault e que agora já nem se vale do falso discurso educador, mas sim de planilhas de custo, eficiência financeira, lucro indecente.
São as novas prisões-negócio, geridas por empresas do mercado, ligadas, por exemplo, às privatizações de rodovias, com detalhados planos de negócio e um empenho ímpar em cortar custos que o setor público jamais pôde cortar. Essas prisões-empresa recebem do Estado até 60% a mais de repasses financeiros por interno do que as prisões do sistema tradicional. Além disso, exploram os presos, cuja mão de obra é 54% mais barata do que a de um trabalhador registrado pela CLT, utilizando-os para a produção de uniformes, equipamentos de segurança e diversos itens que deveriam ser, a princípio, comprados e instalados pela própria empresa gestora. Para que seu lucro seja garantido, devem estar sempre lotadas, com uma taxa mínima desejada de ocupação de 90%.
Cada volta à APAC Santa Luzia foi, ao longo desses dez anos, uma confirmação de que outra prisão é possível. O ambiente leve, amigável, a recepção sempre calorosa, sem que as pessoas tenham que cumprir qualquer “distância de segurança”, escancaram a diferença já na entrada. Um recuperando faz questão de passar pela horta que está sob seus cuidados, outro abre o forno pra exibir os frangos que estão sendo preparados para o jantar e, aos poucos, um universo de gestos cotidianos se apresenta: garrafas PET que formam canteiros decorativos nos jardins, gavetas de madeira feitas para complementar as prateleiras de concreto das celas, pinturas de frases nas paredes, obras de ampliação das oficinas, fantásticos aparelhos de ginástica, construídos com pranchas de madeira e latas.
Do começo confuso, passando pela retomada do cotidiano compartilhado, chegamos a uma realidade que não era prevista por aqueles que participaram da criação dessa APAC. Hoje, os recuperandos não apenas assumem a manutenção do espaço, o controle das próprias atividades e de sua segurança, mas também participam das decisões futuras, discutem os interesses da instituição, apontam prioridades e levantam os meios para a execução de planos. Nova pintura do prédio, aquisição de câmeras de segurança, reforma das instalações elétricas e até ajuda financeira a famílias de recuperandos que passam por dificuldades são alguns exemplos de ações recentes desenvolvidas por eles. Para isso, criam comissões responsáveis por organizar festas de arrecadação, rifas ou qualquer outro evento que os ajude a cumprir seus objetivos.
Uma das conquistas mais surpreendentes talvez seja a realização de escoltas motorizadas sem a participação de agentes penitenciários do Estado. Ou seja, quando os presos saem da unidade para cumprir alguma obrigação externa, são acompanhados apenas por um membro da administração e outro recuperando, escalado para essa função. O índice de fuga? Até aqui, os casos registrados vão de uma a duas tentativas por ano, para um número de escoltas realizadas que varia entre 800 e 900.
Essas conquistas criam um ambiente favorável para que novas pontes se estabeleçam entre prisão e sociedade. Em Santa Luzia, a prisão, prédio maldito, isolado, opaco, temido, já não existe. Cada vez mais, surgem parcerias com a comunidade, por meio de empresas, ONGs, universidades e pessoas interessadas em colaborar. A relação com o Estado se tornou mais sólida, apesar das limitações orçamentárias que ainda persistem, e a colaboração dos juízes para que os processos dos presos caminhem com eficiência se mostrou fundamental. Todos pagam o que devem, nem um dia a mais.
As APACs são reconhecidas hoje como uma experiência avançada de tratamento penal no mundo, mas ainda são minoria no universo prisional brasileiro. Os céticos costumam dizer que a experiência é limitada porque os presos que lá estão seriam os “bonzinhos”. Parecem acreditar que a maioria de nossos infratores são pessoas de altíssima periculosidade, sem recuperação, que não podem ser vistas como vítimas de processos sociais excludentes ou violentos. Curiosamente, o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, realizado em 2015, aponta exatamente para a predominância desses processos. Dos 600 mil presos no Brasil, 56% são jovens entre 18 e 29 anos, 67% são negros e 53% não completaram o ensino fundamental – dados que indicam claramente quais são as vítimas do encarceramento maciço em nossa sociedade. Os mesmos céticos são ainda incapazes de explicar por que muitos recuperandos “bonzinhos” que estão nas APACs respondem também por crimes violentos, com altas condenações. Muitos já viveram, inclusive, o inferno prisional da segurança máxima e, até chegarem à APAC, foram tratados com todo o rigor que merecem os “delinquentes irrecuperáveis”.
Dizem também que a APAC só funciona porque seus presos têm medo de voltar para o inferno de nossas penitenciárias comuns. Tal hipótese, cabível, apesar de extremamente simplista, é falha em pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, por assumir que a maioria de nossos presos não passa de uma multidão de oportunistas. Como se, além de uma prisão menos violenta, não procurassem por uma real oportunidade de romper com o mundo em que viviam antes. Nesse sentido, os críticos analisam a experiência da APAC pelo prisma exclusivo da punição, quando o que ela oferece de diferente é a real perspectiva de uma nova vida. Os depoimentos de ex-recuperandos, seja em palestras, seja nas redes sociais, dão conta desse aspecto. Não agradecem à APAC porque a prisão foi mais leve ou porque o espaço é mais agradável, mas porque foi graças a ela que conseguiram abandonar a rotina de crimes e violência.
Em segundo lugar, a hipótese não explica por que aquele que seria o necessário contraponto à APAC, o falido sistema tradicional, ainda ocupa o protagonismo em nosso país. Afinal, se a segurança máxima deve existir para que a maioria queira manter um bom comportamento nas APACs, esse recurso deveria ser aplicado apenas como castigo aos desobedientes e não ser, cada vez mais, a regra geral.
O horizonte da privatização prisional paira como uma enorme ameaça aos possíveis caminhos de um tratamento penal justo e humano. Temos presos demais. Muitos não deveriam sequer estar encarcerados, muito menos expostos a uma rotina de humilhações que não vai ajudá-los a superar a barreira da violência. Nosso objetivo comum deveria ser um sistema com menos presos e mais APACs, um espaço prisional fraco e incompleto, prestes a fracassar se não for administrado com a participação efetiva dos que lá foram colocados. As alternativas tradicionais estão falidas e as que se apresentam são obscenas. Não temos nada a perder.
Flávio Agostini
Arquiteto e urbanista, estudou em seu mestrado a arquitetura de estabelecimentos penais no Brasil e coordenou o projeto da APAC-Santa Luzia.
Priscila Musa
Arquiteta e fotógrafa, é integrante do Espaço Comum Luiz Estrela e atacante do Baixo Bahia Futebol Social.
Como citar
AGOSTINI, Flávio. Prisão autogestionada. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 9, p. 50-57, set. 2016.