LUGAR
NENHUM
Texto de Silke Kapp
Nowhere, ilustração de Veridiana Scarpelli
Neste trecho do livro “Canteiros da utopia”, a ser publicado ainda este ano, Silke Kapp recupera a utopia irônica do poeta, designer e ativista socialista William Morris, que antecipa como seria a vida em um mundo pós-revolucionário.
William Guest sai exaltado de uma discussão na liga socialista. Os melhores argumentos só lhe ocorrem já a caminho de casa, sentado no “banho de vapor” do trem subterrâneo. Ele deixa a estação em Hammersmith, contrariado e infeliz. Mas seu humor muda depois de alguns passos em direção ao rio Tâmisa. É uma noite de início de inverno, tão bonita que ele esquece que está num sórdido subúrbio londrino e vê apenas as águas e a lua entre as árvores (por um instante, perturba-o a falta de luzes rio abaixo). Quando entra em casa e se deita, a “lógica brilhante” da discussão já desapareceu, restando uma vaga esperança de que, um dia, tudo poderá ser diferente. De madrugada, desperta e passa horas imaginando histórias até adormecer de novo. Dessa vez, acorda sentindo calor. Ele se veste, sonolento, mais tateando do que enxergando. Ao abrir a porta, a sensação é “de um delicioso alívio causado pelo ar fresco e pela brisa agradável” e de surpresa diante de um dia claro de verão. O rio está ali, mas o píer parece diferente. Um barqueiro o cumprimenta como se estivesse à sua espera. Ele entra no barco calado. Quando comenta que a água está muito clara, o homem estranha. Ele dá um mergulho e, ao tirar a cabeça da água e olhar rio abaixo, fica tão atônito que quase se afoga. Só aí nota as roupas, a fala e a expressão do barqueiro – Dick é seu nome –, diferentes do que ele esperaria de alguém naquele serviço. Ele olha a paisagem de novo: desapareceram a fábrica de sabão, a usina de chumbo, a fumaça, o barulho do estaleiro. Há uma nova ponte no lugar da ponte pênsil de Hammersmith.
“Ela era de arcos de pedra, esplendidamente sólidos na construção e tão graciosos quanto fortes; e altos o suficiente para deixarem o tráfego comum do rio passar facilmente. Sobre o parapeito, havia estranhas e fantasiosas pequenas construções, que imaginei serem barracas de feira ou lojas, com cata-ventos e pináculos pintados e dourados. A pedra estava um pouco desgastada pelo tempo, mas não mostrava nenhuma marca daquela fuligem negra que eu estava acostumado a ver em qualquer construção de Londres com mais de um ano de idade.”
A descrição da ponte é o primeiro elemento visível do espaço da utopia. Até aquele momento, William Morris não nos diz o que William Guest vê, mas apenas narra suas sensações, seus delírios e as ausências que o perturbam. Nem sabemos ao certo se a passagem de um tempo a outro se deu durante a madrugada ou já na saída do metrô. Fundem-se os tempos, assim como os espaços. E que a imagem comece a se concretizar numa ponte indica, para além das metáforas óbvias, outra espécie de fusão. As pontes têm a peculiar característica de constituírem tanto obras de arquitetura, no sentido estrito do termo, quanto obras de infraestrutura e elementos marcantes numa paisagem. A ponte de pedra em Hammersmith condensa a ideia que persistirá em todo o percurso de Guest por Nowhere. Natureza e cultura não estão em conflito nem coexistem pacificamente, lado a lado – a natureza foi recriada pela produção humana. Cidade e campo se confundem, os cursos d’água correm não canalizados, florestas estão em toda parte, há um pomar na Trafalgar Square, casas ocupam as margens do rio “como se estivessem, por assim dizer, vivas e fossem simpáticas à vida dos moradores”. Existem áreas densamente construídas, mas nunca muito extensas; em contrapartida, quase não há lugares de onde não se aviste nenhuma construção. Casas, teatros, mercados, hospedarias, oficinas, armazéns, eclusas, barragens e pontes variam em materiais, formas e feitio, mas parecem sempre cuidadosamente inseridos nos seus sítios. Cada intervenção suscita em Guest admiração pela “engenhosidade dessas pessoas em lidar com as dificuldades […] de um modo que as obras mais úteis parecem belas e também naturais”. A sociedade de Nowhere produziu – e continua produzindo – um espaço correlato à revolução da economia, da política, do trabalho, do habitus. Esse espaço mudou com a sociedade, não antes de a vida boa começar, nem depois de sua estabilização.
O fato de William Morris ter escrito News from Nowhere se deve ao sucesso da obra de Edward Bellamy, Looking Backward, que entrou no terreno da utopia como o proverbial elefante na loja de porcelana, sem escrúpulos e oferecendo respostas fáceis às perguntas de ativistas de esquerda, simpatizantes e curiosos. Aos olhos de Morris, Looking Backward não era mais do que uma solução para a “maquinaria da vida”, enquanto todas as instituições continuavam as mesmas, com os mesmos mecanismos de opressão: a família, a linguagem, os hábitos, o trabalho como sacrifício e as artes como adereço. Se não fosse pela miséria dos trabalhadores, diz Morris em sua resenha de Looking Backward, Bellamy estaria “perfeitamente satisfeito com a civilização moderna”. E o fato de Bellamy ter apresentado a revolução como um processo pacífico e automático parecia tornar dispensável o engajamento real numa sociedade livre e até mesmo a reflexão sobre como ela poderia ser alcançada e o que poderia vir a ser. Quem acreditasse no livro e gostasse do socialismo ali descrito o tomaria por modelo e esperaria tranquilo pelo novo mundo; quem acreditasse e não gostasse desistiria dessa causa de uma vez por todas. Morris argumenta que justamente o processo revolucionário suprimido por Bellamy, do qual fazem parte teorias, discussões e ações políticas, seria o ponto de partida e o ensaio para um comunismo verdadeiro. Esse significaria não um Estado-nação que tudo prevê, planeja e controla, mas a associação livre de pessoas em grupos suficientemente pequenos para que cada um de seus membros se sentisse responsável pelos arranjos da vida coletiva e suficientemente articulados entre si para que dispensassem qualquer organização centralizada. A publicação de News from Nowhere em capítulos semanais na revista socialista Commonweal entre janeiro e outubro de 1890 é uma tentativa de ampliar a imaginação do público a respeito da sociedade que poderia vir a existir ou que se poderia ousar desejar.
News from Nowhere cria um mundo pós-revolucionário muito mais profundamente transformado do que a utopia de Bellamy. Morris não explica a viagem no tempo nem especifica a cronologia de Nowhere. Apenas se pode deduzir que tudo se passaria lá pelo século XXII. A sociedade utópica não é um socialismo de Estado, mas um comunismo puro, autogestionário. O dinheiro não foi substituído por cartões de crédito, nem os salários por uma bolsa-cidadão, porque não existem mais transações de equivalentes. As nações não estão pacificadas, porque não há nações. A emancipação das mulheres não se limita ao trabalho, porque não há convenções para constituir famílias ou grupos de coabitação, nem as mães são responsabilizadas por aquilo que os filhos se tornam. A escola não ficou gratuita para todos, porque as crianças são livres e não existe educação formal nem sistema de ensino. A erudição não foi universalizada, porque o conhecimento erudito passou a ser apenas um tipo de conhecimento entre outros, do qual se ocupa quem quer, enquanto as universidades se transformaram em lugares onde as pessoas se reúnem para aprender e pesquisar em qualquer fase da vida. Não há universalização do consumo refinado da grande arte, porque, em vez de consumir arte, as pessoas a fazem. Não existem jornadas prescritas, idade para começar ou encerrar a vida produtiva, exército industrial ou coisa semelhante, porque cada um trabalha no que gosta, se e quando quiser, por prazer no processo e no produto. Não há nem mesmo tecnologias espetaculares, porque a sociedade de Nowhere ultrapassou esse ideal e tornou suas máquinas discretas, silenciosas e não muito importantes.
Morris não escreve um tratado político embalado num romance nem se esmera na explicação de como as coisas funcionam, mas recupera a forma literária da utopia com ironia, ambiguidade e, sobretudo, com uma experiência estética da sociedade transformada, isto é, uma antecipação de como a vida seria sentida nesse outro mundo social. Até os espaços de Nowhere – Londres e o rio Tâmisa até a cidade de Kelmscott – aparecem pouco a pouco, pelas sensações que provocam e não como uma totalidade apreendida do alto de um terraço.
A prioridade conferida à experiência – em detrimento da explicação – em News from Nowhere vale também para a economia, o tema mais espinhoso de qualquer ficção utópica do final do século XIX. Sua primeira indicação surge quando Guest tenta remunerar o barqueiro Dick, que não compreende bem o significado do gesto e apenas olha o dinheiro com curiosidade.
Guest fica constrangido, mas não consegue acreditar; chega a duvidar da sanidade mental do barqueiro. E mesmo depois de compreender que o motivo da recusa não é loucura, mas uma economia de compartilhamento sem cálculo de equivalentes, Guest cometerá outras gafes pelo mero hábito da monetarização. Quando passeia com Dick por Londres, chegam a pequenas lojas de rua cujos produtos estão cuidadosamente dispostos em vitrines. Mas as pessoas não se comportam como compradores e vendedores, apenas se servem. Guest entra numa loja à procura de tabaco e cachimbo e é ajudado por duas crianças. Recomendam-lhe um cachimbo muito belo e bem feito. Ele diz ter receio de perdê-lo, mas a menina o tranquiliza: “Alguém certamente vai encontrar e usar e você pode pegar outro”. Perder, roubar, oferecer, tomar ou manter são ideias que se transformaram ou deixaram de fazer sentido. Até o pressuposto da fabricação em massa – a ideia de que todos precisam ou querem os mesmos artigos – é estranho a Nowhere.
Morris põe essa outra vida em cena sem explicar o sistema que a faria funcionar, porque não há “sistema”. A certa altura, Guest tenta decifrar a economia de Nowhere numa conversa com o velho historiador Hammond, avô de Dick (e mais um alter ego de Morris). Ele pergunta pelos “arranjos da vida” nessa sociedade sem Estado e sem mercado. Mas Hammond segue a premissa da negatividade: “É mais fácil eu lhe contar o que não fazemos do que o que fazemos.” Ele diz que Guest teria que viver ali para compreender, porque o comunismo de Nowhere depende de “uma tradição ou um hábito de vida” que se desenvolveu ao longo de muito tempo.
A crítica imediata à utopia de Morris, já na época em que foi publicada, diz respeito a isso. Ela contrariaria a suposta natureza humana, que as ciências econômicas ergueram ao status de invariante antropológica: o homo economicus, insaciável e sempre em busca da apropriação egoísta de recursos escassos. Mas é bom lembrar que esse lugar-comum levou gerações para se impor e que, até hoje, a reprodução da vida depende de uma infinidade de ações de cooperação que o contradizem. Pesquisas teóricas e empíricas para evidenciar isso não faltam, a começar pelo ensaio clássico de Marcel Mauss sobre a dádiva, que revela uma “forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” nem sequer compreensível num raciocínio economicista. As observações de Max Weber sobre a resistência do “tradicionalismo” ao “espírito do capitalismo” apontam na mesma direção. O aumento de produtividade como fim em si mesmo sempre esbarrou no trabalhador que não quer “ganhar mais e mais dinheiro, mas apenas viver, tal como está acostumado a viver, e ganhar o que é necessário para isso”. Melhores remunerações o levam a trabalhar por menos tempo, em vez de trabalhar com mais afinco para acumular ou consumir mais. É exemplar, nesse sentido, a dificuldade dos colonizadores europeus do século XIX para transformar povos africanos em mão de obra assalariada: fracassaram por completo as tentativas de despertar novas necessidades de consumo e, com elas, a vontade de ganhar dinheiro; foi preciso criar impostos sobre a terra e o gado, tradicionais meios de produção, para forçá-los ao assalariamento. A mesma disparidade entre o comportamento econômico de um europeu moderno e o comportamento dos grupos tradicionais na Argélia levou Bourdieu ao conceito de habitus, para explicar a interiorização de exigências sociais objetivas na forma de disposições subjetivas percebidas como naturais. Portanto, se ao ser humano insaciável corresponde alguma verdade, ela é histórica, não absoluta. Da mesma maneira que surgiu historicamente, pode mudar. Morris explora essa possibilidade.
Morris não atribui a seus personagens uma mudança mágica de comportamento, mas uma passagem por um longo e violento processo revolucionário, narrado pela voz do velho Hammond. Tudo começou no final do século XIX. As reformas em prol da causa trabalhista levaram a um “socialismo de Estado”, com jornadas de oito horas, salário mínimo, controle de preços da cesta básica, educação gratuita etc. Os trabalhadores não pediram nem conceberam nada além dessas reformas, porque, na penúria em que estavam, ficaram satisfeitos em suprir suas necessidades básicas pelos meios que conheciam. Alguns líderes esperavam a extinção gradual do capital. Mas mesmo décadas de crises econômicas não levaram a nenhuma mudança na estrutura econômica e política. A única novidade realmente importante nesse período foi a congregação dos sindicatos – antes fragmentados por categorias – num sindicado único. O Combined Workers, como era chamado, se tornou tão poderoso que a simples ameaça de greve já bastava para que as elites fizessem novas concessões. A queda de braço levou a um impasse, porque nem o capital conseguia dominar a economia a seu modo, nem os trabalhadores conseguiam tomar as rédeas.
Na crise mais grave, que Hammond data em 1952, o Combined Workers exigiu o controle de todos os recursos naturais e meios de produção. Foram às ruas por essa causa e, entre alguns mortos e muitos feridos, os manifestantes conseguiram vencer a batalha contra a polícia. As elites fugiram para o campo, milícias tomaram conta da cidade e o comércio parou. Os trabalhadores formaram um Comitê, que funcionava como governo paralelo e garantia o abastecimento pacífico da população, emitindo vales para pagar o comércio de atacado e varejo.
Os capitalistas, no entanto, não desistiram tão facilmente: ameaçaram um golpe de Estado se o Comitê não fosse preso. O governo então proclamou estado de sítio e deu carta branca ao exército para restituir a ordem. Um general preparou uma emboscada que, numa nova manifestação na Trafalgar Square, matou milhares com uma única salva de tiros. A chacina foi tal que até os soldados ficaram horrorizados e se recusaram a atirar uma segunda vez. No dia seguinte, os jornais conservadores se abstiveram dos usuais comentários cínicos. Um editor teve a coragem de romper o silêncio consternado e fazer a pergunta decisiva: o que vale uma sociedade que precisa ser defendida com o massacre de seus cidadãos desarmados? Por um momento, o episódio despertou a simpatia da classe média pelos trabalhadores e os liberais (a centro-esquerda) conseguiram tomar o parlamento. Mas a classe média logo voltou a clamar por ordem e os conservadores deram um contragolpe. Expulsos do parlamento, os liberais aderiram ao Comitê.
Até esse ponto, os eventos do processo revolucionário descrito por Hammond não ultrapassam o esperado. Os comportamentos e as posições dos grupos retratados seriam identificados por qualquer leitor de 1890 e soam familiares ainda hoje. Contudo, Morris introduz um elemento novo na narrativa de Hammond, ou na gênese da utopia, que não faz parte dos chavões do debate político por volta de 1890. Entre paralisações, prisões e problemas de abastecimento, os trabalhadores teriam começado a se organizar numa rede de núcleos independentes e coordenados entre si. O movimento deixou de ser uma massa de pobres encabeçada por figuras carismáticas e passou a ter muitas cabeças. Ainda que continuassem incapazes de imaginar como seria uma vida sem coerção, perceberam que valeria mais a pena brigar por isso do que continuar brigando por salários maiores e jornadas menores. A fase seguinte do processo revolucionário se deve a essa rede. Quando a polícia prendeu novamente as lideranças do Comitê, nenhum trabalhador resistiu ou protestou. Na manhã seguinte, eles pararam de trabalhar. Sem exceção.
Não houve jornais, nem trens, nem telégrafos, nem mercados. No início, os servidos sentiram a falta dos seus serviçais para preparar a comida, fazer as compras, resolver as necessidades domésticas. Depois sentiram a paralisação de fábricas, oficinas, canteiros, instituições financeiras e serviços públicos. Entraram em pânico. Enquanto isso, em vez de trabalhar para os empregadores, a população iniciou uma produção independente. Como o governo conservador viu que a estratégia de decapitar o movimento já não o enfraquecia, acabou soltando os líderes do Comitê. A luta de classes deixou de ser uma guerrilha e se transformou em guerra civil formalizada entre duas frentes sob regimes políticos distintos: o regime do parlamento (das classes dominantes e do exército) e o regime do Comitê (dos trabalhadores urbanos e rurais). Depois de mais dois anos de batalhas, os trabalhadores ganharam a guerra civil e o comunismo se instituiu.
Mas o fim da guerra não foi o início de uma boa sociedade. A estrutura de produção estava em escombros, destruída pela fúria contra a velha economia política. E, embora as idas e vindas da revolução tivessem feito emergir talentos entre os trabalhadores, como a habilidade de organizar a produção coletivamente, os comportamentos ainda eram pautados pela lógica da escassez. Continuaram trabalhando duro, limpando escombros, reconstruindo e aperfeiçoando as máquinas e, depois, almejaram apenas ócio e conforto. O comunismo se tornou utilitarismo. Máquinas cada vez melhores e que poupavam ainda mais trabalho supriam as necessidades, enquanto as pessoas ficavam entediadas a maior parte do tempo. Parecia confirmar-se a profecia reacionária de que o fim da competição traria apenas marasmo e uma sociedade muito tecnológica, porém estúpida. O que acabou dispersando essa ameaça foi “a produção do que costumava ser chamado de arte, mas que não tem nome entre nós porque se tornou uma parte necessária do trabalho de todo o homem que produz”. A partir do tédio, as pessoas começaram a tentar fazer coisas com as mãos pelo simples prazer de fazê-las.
O antiquário Henry Morsom, que Guest encontra na pequena cidade de Wallingford, complementa a narrativa de Hammond acerca desse período de transição do utilitarismo às artes. Morsom diz que os conhecimentos práticos chegaram a um nível tão lamentável que “não só era impossível encontrar um carpinteiro ou um ferreiro numa vila ou numa pequena cidade, como as pessoas nesses lugares tinham até esquecido como fazer pão”. O pão era enviado de uma fábrica de Londres todas as manhãs; o conserto mais simples demandava máquinas caras e viagens longas; os conselhos municipais se reuniam para discutir trivialidades como “a proporção certa de álcali e óleo para fazer sabão”.
Morsom mostra a Guest alguns objetos feitos manualmente nessa época: toscos, rudimentares, mas vigorosos. Nada neles remete às artes do passado, muito menos às belas artes do século XIX; recomeçaram quase do zero. Pouco a pouco, as pessoas aprenderam ou inventaram de novo os ofícios, adquirindo cada vez mais habilidade e excelência. E então, meio século depois do fim da guerra civil, máquinas começaram a ser desativadas discretamente, uma após a outra, “com a desculpa de que máquinas não poderiam produzir obras de arte”. Sucedeu-se à época industrial mais avançada uma nova época artesanal, que já “não era resultado do que costumava ser chamado de necessidade material”.
A própria ciência, ao deixar de ser “apêndice do sistema comercial”, tornou-se um campo do qual participa quem tem interesse em certo tipo de compreensão de causas e efeitos. Ela já não representa uma posição ou doutrina privilegiada. Quem gostar pode se ocupar apenas de coisas intelectuais, embora tal dedicação exclusiva seja pouco comum.
Máquinas sofisticadas continuaram existindo apenas para trabalhos em que ninguém visse nenhuma graça. “Todo o trabalho que seria aborrecido fazer com a mão é feito por máquinas imensamente melhoradas, e em todo o trabalho que se faz manualmente com prazer, as máquinas foram dispensadas.” Guest se depara com muitas dessas escolhas tecnológicas. Ele descobre, por exemplo, que, além dos carros de tração animal e dos barcos a remo e à vela que a maioria das pessoas usa cotidianamente, existem veículos elétricos (force-vehicles) para o transporte terrestre e fluvial de cargas. Diante de uma eclusa manual, que Guest estranha um pouco, explicam-lhe que já houve ali uma eclusa mecânica, mas que foi considerada inconveniente, pois “válvulas simples e comportas com um grande contrapeso respondem a todos os propósitos e são fáceis de manter, com o material sempre à mão”.
O primeiro canteiro de obras pelo qual Guest passa é o conserto de uma estrada. O episódio foi escrito por Morris depois da publicação de News from Nowhere na Commonweal, quando revisou o texto para a edição na forma de livro. Ele tenta responder aos céticos que consideram impossível resolver questões práticas numa ordem social como a de Nowhere. Morris atribui a Guest o mesmo ceticismo: “Deparamo-nos com um grupo de homens fazendo reparos na estrada, o que nos atrasou um pouco; mas eu não lamentei, porque tudo o que tinha visto até então parecia apenas parte de um feriado de verão, e eu queria ver como esse povo lidaria com um trabalho realmente necessário”. Em vez de labuta pesada e trabalhadores desgostosos, o que Guest vê lhe parece uma “boating-party at Oxford” – um bando de universitários prontos para um passeio de barco. Os jovens conversam e riem enquanto trabalham, algumas moças e um garoto com um cachorro assistem, há comida e bebida à espera. O dispêndio de força muscular se passa como um esporte, com pequenas disputas pelo melhor desempenho. Os trabalhadores cumprimentam o grupo de Guest, ajudam na travessia pelo trecho inacabado da estrada, mas voltam ao serviço de imediato, como crianças quando interrompem um jogo na rua para deixar um carro passar.
Os artefatos e a arquitetura de Nowhere refletem o prazer com que as coisas são feitas. Guest se espanta a cada momento com a qualidade de vidros, cerâmicas, pinturas, tecidos etc. Num acometimento de moral oitocentista, ele chega a indagar se as roupas não seriam festivas demais. A resposta é contundente – “Seria fácil, para nós, apenas ter o trabalho de fazer roupas confortáveis, mas não escolhemos parar por aí.”
Quando Guest pergunta pelos arranjos domésticos, presumindo que as pequenas casas sejam ocupadas por famílias convencionais e aludindo ao caráter reacionário dessa instituição, Hammond pondera que modelos como o falanstério (entenda-se, naquela versão rígida, difundida pelos discípulos de Fourier) só puderam ser concebidos em oposição a um contexto de extrema pobreza. Quanto a Nowhere, existem as formas mais variadas de coabitação; “vivemos como gostamos”. Há pessoas que moram sozinhas, há famílias menores ou maiores, há comunidades grandes vivendo juntas.
Os espaços ocupados para isso são de muitos tipos. O velho Hammond mora no Museu Britânico. Outros personagens que Guest conhece em sua viagem moram em cabanas e chalés. O antigo Eton College é usado como moradia por pessoas engajadas em estudar. Uma velha abadia foi apropriada por um grupo que trabalha no campo, mas inclui um escritor que apenas gosta do lugar e não participa da agricultura. Kelmscott Manor, a última parada de Guest em Nowhere, está ocupada por crianças. Também há muitos alojamentos temporários, já que as pessoas passeiam, viajam e rearranjam as configurações domiciliares com frequência. Bandos de crianças passam semanas ou meses nas florestas durante o verão, em tendas, velhas cabanas ou construções que elas mesmas fazem.
Nowhere é habitada por uma população semelhante à do final do século XIX em termos quantitativos, apenas com uma distribuição mais extensa e mais dinâmica e sem limites externos. Hammond conta que as nações desapareceram junto com a desigualdade social e o modo de produção do capital. Isso possibilita a autogestão por unidades de pequena escala, denominadas comunas, bairros ou paróquias (os termos remontam à história que lhes deu origem, embora, na prática, as diferenças sejam irrelevantes). Dessa gestão participam todos os que queiram e estejam relacionados à unidade, não importando por quanto tempo.
Questões de interesse coletivo são decididas entre todos os “vizinhos” (assim chamam uns aos outros, genericamente). Sem lucro fundiário, sem sobrelucro de localização, com uma organização policêntrica e mobilidade residencial plena, as batalhas pelo espaço se tornaram bem mais amenas. Não que os habitantes de Nowhere estejam sempre automaticamente de acordo – há dissensos. Porém, visões diferentes convivem, sem se enrijecerem em partidos permanentemente antagônicos.
A revolução social de Nowhere também foi uma revolução espacial. O relato de Hammond permite inferir o processo. Em Londres, a demolição dos bairros precários de cortiços e casebres se deu imediatamente, enquanto outras áreas tiveram novos usos antes de serem alteradas. O antigo distrito de negócios foi usado como moradia pelas “pessoas dos slums extintos”. Quem se habituou a viver nesses prédios preferiu manter o mesmo padrão de adensamento mais tarde. Outros lugares foram desadensados e transformados tão radicalmente que Guest mal reconhece o traçado viário. Mesmo as obras monumentais do século XIX valem pouco na memória dos habitantes de Nowhere. O Palácio de Westminster ficou de pé e, sendo de fácil acesso pelo rio, serve como depósito de adubo e entreposto de produtos agrários.
Nas vilas rurais, quando a guerra civil terminou, multidões que fugiam das cidades grandes se atiraram à terra. Isso teria levado a uma nova forma de domínio territorial, se a experiência da revolução já não tivesse gerado alguma prática cooperativa e uma aversão radical à propriedade privada. Com o tempo, os migrantes urbanos se adaptaram ao novo meio, criando uma espécie de fusão cultural “rururbana”, com formas inéditas de ocupação: casas espalhadas pelos campos, implantação de novos assentamentos e reocupação de vilarejos antigos. Quando Guest vem a conhecer esses lugares, talvez dois séculos depois da guerra civil e um século depois do utilitarismo, ele nota que novas construções se juntaram até às pequenas cidades adormecidas desde a Idade Média.
O utilitarismo tende a uma dominação bem equacionada – sustentável, como se diz –, sem desmanchar a hierarquia entre o mundo humano e o resto. Em Nowhere, é diferente. O território não se divide em áreas de preservação e seu correlato, as áreas de deterioração. Os cursos d’água estão vivos, cheios de peixes, ao mesmo tempo que são intensamente usados como vias de transporte. A variedade de espécies animais e vegetais aumentou, incluindo árvores de crescimento lento e flores frágeis, ao mesmo tempo que há culturas em toda parte.
De um modo geral, a primeira época pós-revolucionária se caracterizou pela construção rápida de equipamentos eficientes, mas espartanos. Dick menciona, por exemplo, que a ponte de pedra em Hammersmith teria sido inaugurada em 2003 e que antes havia ali uma “ponte de madeira simples”. Já a segunda época pós-revolucionária gerou uma produção realmente nova do espaço, mais artística do que utilitária. Ela não tem data para terminar, pois o engajamento nisso é uma das atividades que os habitantes de Nowhere mais apreciam.
Silke Kapp
Arquiteta e urbanista, é professora da Escola de Arquitetura da UFMG e coordenadora do grupo MOM (Morar de Outras Maneiras).
Veridiana Scarpelli
Ilustradora, arquiteta e urbanista, vive na cidade de São Paulo.
Como citar
KAPP, Silke. Lugar nenhum. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 9, p. 02-09, set. 2016.