RETOMADA
Texto de Cacique Babau
Cartazes da oficina conduzida por Denilson Baniwa, Ocupeacidade e Parquinho Gráfico
Uma das mais importantes lideranças indígenas do país conta como seu povo retomou suas terras, enfrentando aqueles que a violavam e o governo brasileiro, que se recusava a demarcá-las. Este ensaio foi produzido a partir da aula que o autor ministrou, ao lado de Maria da Glória de Jesus e Glicéria de Jesus da Silva, no curso Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais: Políticas da Terra, na Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, em 2018.
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O direito da terra é uma proposta tão linda, que sempre foi violada. O homem determinou-se como seu dono. Criou parlamentos e leis para mandar na terra, destruir, dividir, modificar e cavar a terra, como se ela não tivesse direitos. Somos muito ingratos. Pisamos a terra, a chutamos, cavamos a terra e, quando morremos, somos enterrados na terra. Tiramos dela nosso alimento e a envenenamos. Queremos usá-la à exaustão, não importando o desejo dos outros, homens ou animais. O homem é muito ruim, muito cruel. Ele não é merecedor da terra. Uma mãe perfeita como ela, que tem tudo, mas que é violentada o tempo todo.
As nações indígenas são as que mais lutam para manter a água limpa e as árvores de pé. Usamos o solo sob outra lógica. Em nossas terras, não há enchentes nem ventos que matam, você não encontra grandes incidentes. Mas, apesar disso, somos chamados de povo atrasado, povo sem futuro, o entrave do Brasil. Somos considerados o atraso que precisa ser retirado da frente para que tudo possa ser finalmente derrubado.
Em uma reunião recente em Salvador, o governo da Bahia explicava que queria expandir a agricultura, mas que havia um entrave complicadíssimo que atrasava a Bahia. Nós, Tupinambá, estávamos presentes na reunião e ficamos abismados quando falaram: “É a Mata Atlântica, que ninguém quer que mexa!”. O quê? 98% da Mata Atlântica foi derrubada, jogada no chão! Do que restou, a pequena porcentagem que fica no sul da Bahia impede o crescimento da Bahia? Como podemos entender uma mente dessas?
São esses os malucos que comandam nossos estados e nosso país. E ainda chamam o tatu, a paca e a cutia de animais! Irracional é aquele que acha que tem que destruir tudo para satisfazer seu desejo. Aquele que determinou que tem que passar uma linha de trem para escoar a soja. Ora, quem aqui come soja? É para chegar até Ilhéus, construir o empreendimento logístico Porto Sul, violando a natureza, criando um dos maiores portos a mar aberto do mundo para escoar soja e outras commodities para a Europa. Querem aterrar mais de 3 quilômetros de mar aberto e tirar largos trechos de Mata Atlântica nativa e acham que a natureza não vai responder. E a sugestão de criar um contorno para passar por fora? Não, encareceria demais o projeto.
É assim que somos tratados, indígenas e quilombolas: como algo que pode ser removido, exterminado, criminalizado. Essa visão de país foi fundamentada na universidade trazida para o Brasil, uma universidade de pensamento europeu, na lógica do feudalismo, na qual o vassalo é sempre vassalo e o senhor, mesmo falido, é sempre o senhor, que vai pisar no vassalo mesmo que o vassalo seja agora muito rico e poderoso. O Brasil nunca teve uma universidade própria, brasileira.
Nossa terra está doente e raivosa? Ela está começando a se vingar? Vai se vingar cada vez mais se não a obedecermos e recuarmos, corrigindo os erros que cometemos. A mãe é tão bondosa que perdoa nossos erros e vai se recompondo e nos ensinando de novo como ser realmente humanos. Porque aqueles que nos representam não têm humanidade.
Fazendeiros do sul da Bahia acham que têm que derrubar a floresta para plantar cacau irrigado, “cacau de alta produção”, segundo eles. Mas nenhuma “alta produção” alcançou a produção indígena. Que pesquisa é essa que promove o “cacau de alta produção”? Hoje, 1 hectare de cacau dos fazendeiros não passa de 200 arrobas, o que significa um plantio de 1.200 pés de cacau. Nossos parentes, no solo protegido debaixo da floresta, plantavam e colhiam 1.000 pés de cacau todo ano. Estamos bem avançados, não? Mas não concordam com nosso plantio, porque não dependemos da indústria. Para produzir, os fazendeiros têm que comprar o que é fabricado pela indústria. Fertilizar o solo e combater as pragas. E assim prejudicam todos nós.
Os inseticidas mataram as abelhas que polinizavam e faziam o cacau produzir em alta escala. Esqueceram-se do detalhe de que eram elas que faziam o cacau produzir mais. Prejudicaram as abelhas e nós também, que sabíamos que a abelha era fundamental nas roças de cacau. Nunca matávamos as abelhas. Bebíamos o mel e as largávamos lá, para fazerem o trabalho que não sabíamos fazer, pois cada um faz sua parte. É uma parceria: ao mesmo tempo que elas fecundavam as flores trocando o pólen, faziam o mel saboroso – e ainda tinha o cacau. Depois chegaram os madeireiros em busca de tudo o que era madeira de lei.
Mataram e destruíram nossa agricultura tradicional. Com sua arrogância, foram quebrando nossa cadeia alimentar, que tínhamos em perfeito estado até o final dos anos 1980. Perguntávamos: “Puxa, como vamos viver sem a parceria estreita e harmoniosa com os animais?”. Quando começaram a cortar jussara para a indústria, foi degradante para os Tupinambá. Atingiram em cheio nossa fonte de alimento, pois a jussara era base alimentar nossa e dos pássaros. O mutum, a jacupemba e outros pássaros da floresta têm como base alimentar a jussara, seguida da bicuíba, da jindiba, do jatobá… Sem a jussara, os pássaros vão embora para outra região e deixam nossa casa mais pobre de alimento.
Os Tupinambá não pescam como os brancos. Pescamos olhando a cor do céu, o período de chuva e a trovoada. Dependendo da chuva, a gente pega traíra. Se a trovoada for boa, fazemos nosso jiqui e pegamos pitu. O que cai dentro do jiqui, nós consumimos e, com os outros peixes, não mexemos. Se não vieram para o jiqui é porque não são nossos. Mas os brancos começaram a se alimentar de pitu, viram que é algo tão saboroso, que contrataram pessoas para jogar veneno. Sabemos que, fora da trovoada da chuva, é bem difícil pegar pitus, porque eles moram dentro das pedras. Mas eles aprenderam que, se envenenassem o poço, os pitus saíam de lá e morriam em grande quantidade. E, ao fazer isso, não só tiravam nosso direito de nos alimentar, mas também o direito da reprodução da espécie. No poço envenenado, os que sobreviviam ficavam estéreis.
Há na Mata Atlântica uma árvore de grande porte que dá no sul da Bahia, o vinhático. Uma árvore belíssima, com a qual fazíamos nossas canoas tradicionais, porque ela não apodrece. Mas a indústria naval descobriu a árvore e invadiu o território para roubar a madeira. Os fazendeiros começaram a destruir tudo, inclusive as roças de cacau, para vender a árvore. Tínhamos 60 riachos, que foram reduzidos para 25, porque a Mata Atlântica é um solo raso, uma mata novíssima plantada recentemente, há uns dois ou três mil anos. E quando você tira as árvores altas, sabe o que acontece? O sol bate diretamente no solo e o solo não aguenta. O solo seca e não morre só árvore grande, morrem também as pequenas, que sobreviviam debaixo das altas. Morre tudo. As chuvas começam a ficar raras, a não ocorrer nas épocas certas, nos impedindo de fazer os plantios.
E assim começamos também a morrer. Em 2004, tivemos 17 óbitos na aldeia da Serra do Padeiro, o que nos fez ir buscar em nossa cultura religiosa o motivo. Até nas mulheres grávidas, que não morriam de parto, as crianças morriam antes de nascer. Isso não é normal entre nós, Tupinambá. Os encantados diziam que tínhamos que defender a terra que nos defendia. E deparamos com um problema. A antropóloga que estava fazendo o estudo da terra tupinambá para a demarcação declarou para nós que, se fizéssemos a retomada, ela não faria mais o estudo.
Mas os Tupinambá não gostam de receber ordem. Dissemos para ela: “A partir de agora você pode ir embora porque a terra é de Tupinambá, não depende de você e nem de ninguém para demarcar!”. Somos nós que demarcamos a nossa terra. Somos nós que dizemos por onde ela passa e como ela vai valer. “Vai embora, que amanhã vai ter retomada.”
Naquela época, em torno de 30 crianças baixavam no hospital, por semana, por desnutrição. Aí, nós retomamos a fazenda Bagaço Grosso em 2004 e levamos as famílias seis meses depois. As mulheres foram cuidando das hortas. Um grupo de guerreiros buscou os jogadores de veneno e os botou para fora. Outro grupo foi procurar os caçadores ilegais e dissemos: “Vamos tomar conta”. Todas as motosserras dentro da mata nós tomávamos e mandávamos o cabra ir embora.
Blindamos nossa terra rapidamente. Falamos aos fazendeiros: “Aquele que ligar a motossera e derrubar uma árvore nos convida a retomar! Nós vamos e retomamos!”. Fizemos nosso dever de casa. Alguns fazendeiros acharam que estávamos mentindo e ligaram as motosserras. Fomos lá e retomamos. O Exército, propriamente, chegou na virada de 2013 para 2014. Vários Tupinambá de aldeias da praia se juntaram a nós em uma semana e tiramos dezenas de fazendeiros de dentro da área.
Os encantados disseram: “Olha, aqueles que não têm onde viver vocês mantêm”. Porque é diferente, são pessoas que viviam escravizadas por fazendeiros e tinham no máximo 5 hectares de terra, muitos filhos e viviam a mesma pressão. Se os tirássemos da terra, não teriam para onde ir. Eles estudam em nossa escola, o Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, lhes damos educação e também já melhoraram de vida.
Mas o certo é que, de 2005 em diante, já não tínhamos mais desnutridos. Ninguém mais passava fome. Não havia mais mortalidade infantil na nossa aldeia. Todos estavam gordinhos e a natureza estava se recompondo. Tudo voltava ao normal. Em 2018, você podia ir à Serra do Padeiro tranquilamente e encontrar uma mata, uma floresta intacta. Tem área que nunca foi mexida e as áreas mexidas se recuperaram e estão belíssimas! Os rios voltaram, os riachos se recompuseram, a natureza se refez e os índios antes desnutridos têm hoje automóveis e motos na garagem e internet via satélite em casa. A terra nos deu tudo porque tivemos coragem de enfrentar quem a violava.
Como podemos achar que somos os únicos com direito à terra? E o direito dos pássaros de ter suas árvores para pousar, cantar e fazer ninho? E o direito da preguiça de ter sua árvore para morar? E o direito do tatu de ter uma terra para cavar e morar dignamente? Por que só o ser humano acha que pode viver dignamente sobre a terra? Nós, Tupinambá, não pensamos assim. Temos o nosso direito e a natureza tem o direito dela. Nós não mexemos na parte dela.
É claro que os animais vêm comer nossas roças. Uma onça anda mais de 70 quilômetros por dia e nosso território só tem 47 mil hectares, e menos de 30 quilômetros de comprimento. Uma onça, coitada, passa rapidinho, mas hoje em dia ela vem para nossa casa porque lá encontra comida. Tem caititu, capivara e diversas outras espécies que podem servir de alimento. Temos que arrumar um meio termo para todo mundo sobreviver sem um precisar destruir o outro. E nós encontramos. Ninguém é ofendido pela natureza lá. Mas os brancos continuam achando que a natureza é o problema. Falam que a capivara é o problema e contratam pessoas para matar capivara porque ela derrubou a roça de banana. O caititu está comendo a mandioca toda e tem que matar o caititu porque ele come demais. Mas alguém pensou que ali era antes a casa do caititu, que foi tomada e transformada em roça? Aqui está o erro.
Um gerente de uma grande multinacional da indústria do palmito pupunha que tem plantio na região, inclusive dentro da aldeia, foi à minha casa e disse: “Cacique, vim conversar com vocês, porque sei que vocês não gostam que matemos os animais. Mas estamos precisando fazer alguma coisa porque as capivaras estão comendo demais as pupunhas”. Então, eu disse: “Vou defender a capivara, porque alguém tem que fazer a defesa dela. Quero saber o seguinte: sua roça encosta no rio Una?”. E ele respondeu que sim, que toda a margem do rio é roçada. “A roça estende-se mata adentro, não é? Pois a capivara mora numa faixa da beira do rio de até 20 metros à frente. Ela gosta muito de ficar dentro d’água e, por isso, gosta de ficar nessa faixa. E vocês chegaram e ocuparam a casa dela, plantaram o que ela mais gosta de comer e queriam que ela fosse embora? Ela entra no rio para tomar banho, depois volta para cá e se alimenta, depois volta para o rio. Ela não está errada. Você vai fazer o seguinte: mande seus funcionários deixarem mais ou menos 40 metros na beira do rio se transformar em mato. Não corte a pupunha que está lá, deixa, que é para elas”. Ele me obedeceu e logo ela parou de comer a plantação, pois ele respeitou o limite dela. Antes, ele tinha desrespeitado. A gente desrespeita o direito do outro e quer que o outro não reclame. Ou que o outro não viole nosso direito. Isso acontece a todo momento.
No território tupinambá da praia, eu e outros caciques vamos ter que fazer um novo enfrentamento. Já tivemos um enfrentamento quando queriam construir um mega resort em cima de nossos manguezais. Nós os enfrentamos e eles recuaram. Agora, tem uma indústria portuguesa de turismo que quer fazer um condomínio de casas para os ricos da Europa, com centenas de casas e apartamentos. Só que se esqueceram de que querem montar isso de frente às lindas praias tupinambá, onde não tem morador. Só tem a praia e o mangue onde pegamos caranguejos. O que dá direito a eles de violarem nosso direito? Nosso mangue? Nossos caranguejos? Será que o mundo enlouqueceu? Será que todo mundo estudou para ficar maluco? Com mangue não se mexe! Manguezal é o berço da natureza entre a terra e o mar, o que alimenta ambos! Para quê tem cientista nesse país, se não serve para dizer que num berçário não se mexe? O problema é que as pessoas querem as coisas muito rapidamente. E a natureza age lentamente.
Nunca estudei em uma universidade, nunca pensei em ser cientista, geógrafo, não tenho vontade. Mas sei que, se você aterra um lugar de água, aquela água vai para outro lugar. Se você aterrar 3 quilômetros de mar aberto, você vai mudar até a corrente marítima daquela região e desorientar os peixes que passam ali, os golfinhos, as tartarugas. Toda a orla de Olivença até Canavieiras será alagada, porque a água que será afastada daqui por excesso de pedra e terra vai migrar para a região sul, que é mais baixa. Eles vão alterar a vida marinha naquela região toda. Todos os mangues serão alagados permanentemente. Como é que as pessoas não fazem esses estudos antes de aprovar esse tipo de projeto? Como é que um país não percebe que está se autodestruindo? Há outros métodos, outros modos de fazer eficazes que não provocariam esses danos. Há limitações que têm que ser respeitadas. Nós andamos com nossas pernas e nos guiamos com nossa visão e nossos ouvidos. Os pássaros têm seu sonar. Quando você modifica uma coisa, pode afetá-los.
É muito desgastante, porque nós, indígenas, vemos toda hora esse tipo de coisa. As pessoas que se dizem inteligentes, que constroem o saber, que ensinam, que vão a Marte, que fabricam tudo o que é importante não sabem o básico. Sabem o final, mas desconhecem o começo. E aí é que está o problema. Não é que sejamos radicais ou que não queiramos expansão, crescimento e evolução tecnológica. Nós, Tupinambá, gostamos muito da evolução, mas devemos evoluir todos juntos, para a possibilidade de termos um país poderoso, onde não haja exclusão social, onde não haja faminto, onde não haja violência extrema.
A Aldeia Serra do Padeiro sempre teve um modo próprio de vida, de equilíbrio, nunca gostamos de ser governados por ninguém. Geralmente, quando alguém nos dá uma coisa, o costume tupinambá é dar outra coisa de presente de volta. Se não temos algo para dar de volta, ficamos envergonhados. Como combatemos a pobreza com a retomada? Nós nos organizamos através de planejamento. Nós planejamos tudo, mas não como o branco planeja: todo ano, todo dia, toda hora. A falta de tempo acaba escravizando alguém para fazer o trabalho. Então, o planejamento tupinambá é longo, para cada cinco ou dez anos. E tem que ser muito bom para fazer um planejamento desse tipo. Fazemos assim desde os tempos remotos, antes de os portugueses chegarem aqui.
Naquela época, era por meio da lua. Todos sabíamos que tínhamos que nos reunir para planejar o avanço tupinambá sobre a terra. Vou relatar um pouco como nós fazíamos um planejamento longo antes de os portugueses chegarem, como fizemos para ocupar todo o território nacional. De cinco em cinco anos, nos reuníamos e definíamos que, em cinco anos, teríamos tantas mulheres casadas, tantos curumins, e, na verdade, o que tínhamos não seria suficiente. Esgotaria o alimento para nós da região. Logo, tínhamos que avançar para criar outra aldeia. “Nós vamos ter que dividir essa aldeia daqui a cinco anos”. E decidíamos naquele planejamento quantas aldeias iam ser criadas em cinco anos.
Os guerreiros pesquisadores pegavam as canoas e outros saíam a pé, um grupo grande. Os Tupinambá, aonde quer que fossem, não deixavam de levar farinha, porque a farinha é mais demorada de fazer. O peixe, eles achavam, mas o beiju, eles tinham estoque para transportar. Então, esse grupo andava e, quando eles achavam um lugar belíssimo, eles ficavam, e o outro grupo avisava que já tinham conseguido um dos lugares. Dali, outro grupo já avançava mais. Eles sabiam que, seguindo o planejamento, todo mundo estaria onde aquela expedição parasse. Isso é fantástico, porque não é só avançar para mudar o grupo familiar. Talvez lá na frente tivesse outra etnia e ele tinha que criar a estratégia de guerra para empurrar a outra ou então ficar amigo dela e dividir o território.
Hoje, ainda fazemos essa mesma coisa, mas de outro modo. Calculamos que, em cinco anos, as crianças que estão com oito ou nove anos provavelmente já estarão casadas – geralmente casamos com 13 ou 14 anos –, a família pode aumentar e não teremos roças para manter tantas famílias. Então, vamos ter que fazer mais roças para manter essa quantidade de famílias. E dividimos o que vamos plantar de mandioca, banana e outras frutas. Tudo é pensado. Quantas casas vão ser feitas, quais vão ser as melhorias nas casas, quantas festas vamos fazer, quanto vamos gastar…
Todo esse planejamento – que não era escrito – era discutido durante três ou quatro dias, embalado na mente. Mas o Sistema Nacional de Emprego (SINE) sentou conosco e disse: “Agora é melhor escrever”. E começamos a fazer um planejamento escrito para nós, Tupinambá. Como o mundo havia mudado e estávamos lutando por um território, precisávamos de dinheiro para poder ir a Brasília. Localmente, não tínhamos tanta necessidade, mas, para viajar, tínhamos que ter o recurso. Foi quando procuramos o SINE e um advogado para fazermos uma associação. Criamos a Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP), em 2004, e, com isto, conseguimos dinheiro para fazer nossas viagens, lutar pelo território e combater a fome em nossa comunidade. Não queremos tomar dinheiro emprestado de bancos. Não queremos que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) venha aqui e diga o que temos que fazer.
Visando à nossa luta, fizemos um planejamento de roça de mandioca, que é mais rápido. A mandioca amadurece rápido, a partir dos oito meses, mas você pode ir colhendo aos poucos, até chegar aos dois anos de idade. Então, você faz uma roça que não precisa devastar de uma vez. Você tira de acordo com a necessidade e, quando tirou esse pedaço, pode replantar e, quando chega ao final, a de cá já está madura de novo. Você utiliza o mesmo solo o tempo todo durante cinco ou seis anos. Quando ele degrada e é abandonado, a roça é substituída por outra.
A gente planejou como recuperar também as roças de cacau. De tudo o que vendíamos, tirávamos uma porcentagem, de 30%, e deixávamos na associação, para investir na produção da próxima safra. Hoje, chegamos a arrecadar 750 mil reais por ano na associação, só com os 30% da nossa produção. Nossa produção de cacau, que era abaixo de mil arrobas, cresceu para mais de 14 mil arrobas por ano. Cortamos mais de 30 mil quilos de seringa por ano. Banana-prata e banana-da-terra, nós nem calculamos… Temos uma produção anual de abacaxi em torno de 300 mil. Todo mundo tem, ninguém fica sem, porque é atendido pela coletividade. A associação vende para as empresas, 30% ficam aqui e 70% são divididos entre todos os que trabalharam. Mas todos, mesmo! Não é “todos” assim como é com os brancos. Todos que foram trabalhar, na hora da partilha, estão lá.
Assim, temos uma aldeia onde os jovens sonham. Eles sonham e não querem ir embora. Eles querem estudar, pesquisar, namorar, casar, mas sendo Tupinambá. Eles têm orgulho de ser Tupinambá. Cada um que expressa seu desejo será apoiado, mesmo que esteja errado. Porque só tem um jeito de aprender: errando. Se você tem medo de errar, não vai aprender. Só sabe que acertou no momento em que você errou. O erro é a parte mais importante do aprendizado. Nós erramos e aprendemos e continuaremos errando e aprendendo.
Chegamos a um patamar dentro da questão indígena a que nenhum povo indígena conseguiu chegar. Conseguimos garantir o território sem a terra estar demarcada, sem estar homologada. O governo não cumpriu uma reintegração de posse sequer na Serra do Padeiro. Conseguimos nos manter ali porque temos autonomia espiritual, financeira e coletiva. Coletiva para enfrentar a guerra, espiritual para não tremer diante do inimigo e financeira para nos manter abastecidos. No tripé da guerra tupinambá, há elementos prioritários. Primeiro, estude o inimigo. Em segundo lugar, armazene bastante alimento. Procure as principais nascentes de água e ocupe a terra. Leve seus alimentos e depois crie uma barreira para impedir seu inimigo de chegar até o alimento e a água. De sede, ele se renderá e não será preciso matar ninguém.
Cacique Babau
Rosivaldo Ferreira da Silva, conhecido como Cacique Babau, é liderança indígena do povo Tupinambá da Serra do Padeiro, na Bahia.
Denilson Baniwa
Artista, curador, designer, ilustrador e ativista indígena. Participou de exposições no CCBB, Pinacoteca de São Paulo, CCSP, Centro de Artes Helio Oiticica, Museu Afro Brasil, MASP, MAR e Bienal de Sidney.
Parquinho Gráfico
Espaço de trabalho na Casa do Povo mantido por artistas, coletivos e designers e voltado para a experimentação gráfica.
Ocupeacidade
Grupo que produz coletivamente ações artísticas nos diversos espaços da cidade e o projeto zerocentos publicações, com formatos independentes.
Como citar
BABAU, Cacique. Retomada. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 13, p. 98-105, mai. 2019
Veja também
A EXTINÇÃO DO
SÃO FRANCISCO
Texto de José Alves de Siqueira Filho
Transposição, fotografias de Tuca Vieira